Mãe, sabe, vou dizer-lhe uma coisa, tenho muitas saudades suas, palavra, eu que, na sua opinião, fui o mais difícil dos seus filhos e comecei cedo porque ao nascer quase a ia matando. Quase a ia matando a si e a mim dado que na aflição de a salvarem me esqueceram a um canto, afogado em secreções. Depois, com sete ou oito meses, encontraram-me em coma com a meningite, depois aos dois ou três anos uma tuberculose pulmonar de que me lembro tão bem, do mal estar horrível da febre, de semanas e semanas fechado num quarto, a olhar-me no espelho do armário numa esperança de companhia. Recordo-me do meu avô me trazer presentes à cama e de eu atirar tudo ao chão, furioso, porque não eram presentes que eu queria, conforme vomitava a comida que me davam porque não era comida que me apetecia. Pensando nisso agora afigura-se-me tão óbvio o que eu necessitava. Pouco depois
(é assim que me parece)
ensinaram-me a ler e comecei a melhorar porque lia e gostava de resolver puzzles e problemas de cubos, porque ansiava entender tudo. Isso acho que a mãe compreendia confusamente e a minha pobre precocidade assustava-a, apavorada que os meus irmãos, que iam nascendo, fossem burros. Não eram, claro, a única diferença estava em que não tinham passado pelos tormentos físicos que passei tão cedo, sobretudo a solidão horrível da doença, que continua a esporear-me a alma, que continuará para sempre a doer-me. Daí para a frente
(nunca lhe disse isto, mãe)
a minha vida foi-se tornando, cada vez mais, uma empresa de demolições e reconstruções, mais a horrível chatice da escola, que não me interessava um pito, a tentar defender-me lendo Júlio Verne durante as aulas, às escondidas, até a régua ou o ponteiro do professor me apanharem a moleirinha. Mas gostava de Júlio Verne sobretudo por dois conselhos aparentemente extra-literários e, na realidade, tão importantes: o primeiro era sentar o rabo em cima da página acabada a fim de aquecer a prosa; o segundo deixar o trabalho num parêntesis aberto na ideia de o arejar. Para além de outras razões fundamentais, por exemplo a necessidade, para um escritor, de receber o que ele chamava Lições de Abismo. Júlio Verne é um autor muito mais relevante do que as pessoas julgam. Estou a lembrar-me, por exemplo, de um final de capítulo em que dialogam a avó e o neto. Mais ou menos assim, porque estou a citar de memória:
“ – E esse senhor é louco?
perguntou a minha avó. Fiz que sim com a cabeça. A minha avó continuou
– E quer levar-te com ele?
mesmo sinal.
– Para onde?
perguntou, e eu indiquei com o dedo o centro da Terra.”
E razão tem o meu estimado Alberto Manguel em organizar todos os anos um Congresso Júlio Verne na cidade natal do escritor. Nantes. Mas adiante, mãe. Eu apenas queria ir ao centro da Terra no foguetão de um livro escrito por mim porque sabia qual parte do centro da Terra eu desejava, e portanto que se lixasse o resto: só me interessava essa viagem, ainda hoje só me interessa essa viagem, e sacrifiquei praticamente tudo o mais para sempre. Quer dizer: não sacrifiquei nada, era apenas o que eu pretendia da vida. Os nossos mal entendidos residiam nisso: eu só me preocupava com o centro da Terra e a minha Mãe queria que eu fosse uma pessoa responsável e séria. Compreendo-a muito bem: no seu lugar faria os impossíveis para impedir um filho meu de se tornar uma espécie de Ícaro a tombar, de asas desfeitas, no negrume do desconhecido. Essa foi a grande querela, mais ou menos oblíqua, mais ou menos silenciosa, da nossa relação. Acabou por aceitar, mas ficou lá em cima a espreitar-me, preocupadíssima com aquele voo que ela achava terrível e eu a única coisa por quem daria a vida. Até ao fim a minha estranha existência preocupava-a e intrigava-a mas lá acabou por aceitá-la numa resignação inquieta
(parece um paradoxo mas não é)
e assustou-a sempre
(ela que quase nada assustava)
o pânico de um falhanço irremediável
(entre parêntesis tenho muitas saudades suas.)
Agora, que já não está perto de mim
(se calhar está, se calhar há-de arranjar sempre maneiras de estar)
e eu me acho quase a acabar a tal viagem, o que mais desejaria era perguntar-lhe
– Vê que cheguei, mãe, vê que cheguei?
e acenarmos de longe um ao outro, felizes por afinal estarmos muito mais perto. E então podia, com a idade que tenho, sentar-me ao seu colo, perguntar
– Não tem por aí um beijo a mais de que não precise para eu pôr nesta bochecha?
e voltar a sentir a sua boca, que a mãe às vezes me dizia doer-lhe por causa das dúzias de beijos que, em pequenino, me dava.