Bom, então fomos seis meninos, cinco loiros, de olhos claros, e um moreno, de cabelo preto. O mais novo conheço-o mal, era pequeno ainda quando fui para a tropa, continuava pequeno ao voltar de África, não me lembro de termos tido uma única conversa, há anos e anos que anda quase sempre pelo estrangeiro. Vi-o um bocadinho mais há uns tempos, em Itália, quando lá fui receber um prémio e ele, então embaixador, apareceu. Foi estranho: sentia-me, ao mesmo tempo, perto e longe dele, parecia-se imenso com a Mãe e não tínhamos nada para dizer um ao outro. Apresentei-o a alguns membros do júri do prémio, Claudio Magris, Naipaul, Adonis, Michel Serres, Edgar Morin, deixei-o a conversar com o meu editor, Carlo Feltrinelli, de vez em quando observava-o pelo canto do olho durante o jantar, durante o baile, e voltei para o hotel a cantar hinos fascistas na limusine enquanto os italianos me encaravam com reprovação
Mussolini é la salveza
De la nostra libertá
o meu amigo Jeff Love se divertia imenso, eu pensava na frase do Zé Cardoso Pires quando me via com um ou mais irmãos meus
– Há entre vocês uma relação fortíssima
e tentava compreender como seria a minha relação com este. Com os outros não precisava de falar
(o João para mim
– Tu sabes sempre o que eu estou a pensar
e eu sei sempre o que tu estás a pensar)
o que é óptimo porque falo pouco, mas com este não lhe conhecia o idioma. Com o Pedro, por exemplo, os momentos em que dialogávamos mais eram a seguir ao jantar das quintas-feiras, quando íamos fazer chichi contra a cascata à esquerda do portão, ambos a olharmos para baixo, lado a lado, no escuro. Fazer chichi acompanhado é o acto de amizade mais profundo que conheço.
E depois íamo-nos embora com a sensação de havermos discutido imensas coisas. E de facto, palavra de honra, tínhamos discutido imensas coisas. Ainda hoje, agora que me fizeste a maldade de ter morrido, mijo sozinho com a certeza que a tua sombra está ali, permanece ali, a falar-me, porque os cinco meninos loiros e o menino moreno continuam. Estamos todos e se calhar engano-me quando penso na tarde em que o João se veio despedir de mim antes de morrer também, isto é poucos dias antes, e ficámos horas sentados no sofá, quase sempre em silêncio. A certa altura comecei uma frase
– Os pais
tu interrompeste-me logo:
– Se vais falar nos pais vou-me já embora
e apenas então, que estúpido sou, compreendi os abismos da tua dor. Acompanhei-te ao táxi devagarinho. Demos um beijo rápido, sem palavras
(na realidade nunca ouvi um discurso tão comprido)
entraste no carro, instalado à frente, e fechaste a porta sem olhar para mim, não fosse eu cair na palermice de tentar um gesto de adeus. Eu sei que às vezes fico parvo mas tanto não, mano, tanto não. Permaneci especado até desapareceres na primeira curva, continuei especado durante imenso tempo, sozinho, depois meti as mãos nos bolsos e voltei muito devagar para casa. Sozinho, isto é: sem ti. Sem ti é uma solidão enorme. O que dissemos um ao outro, calados, foi tanto. Continuava a ver-te no picadeiro de Cavalaria 7, com cinco ou seis anos, quando o Cara Linda tomou o freio nos dentes, desatou aos pulos, e tu, sem a ajuda de ninguém, equilibrado lá em cima. Já nessa idade tinhas tomates, uns grandes tomates. Numa família que se orgulhava imenso de ser corajosa a única pessoa que estava cheio de medo que tu caísses era eu. Claro que não caíste, está para nascer quem te derrube. Mano. Mano mano mano. A maior proeza da minha vida foi quando, aos quatro anos, e tu com três, te salvei de morreres afogado no lago grande do avô Lobo Antunes. Ainda hoje me envaideço disso. Mas no lago grande do Hospital da Cuf não fui capaz de fazer nada. Até hoje me enfureço comigo. A sério, meu querido: até hoje me enfureço comigo.
(Crónica publicada na VISÃO 1335, de 4 de outubro de 2018)