Correm as imagens do deputado Filipe Melo, do Chega, a fazer trejeitos com a boca (como que a mandar beijos) à deputada Isabel Moreira, do PS. Discutiam-se os incêndios e os bombeiros, num debate agendado pelo Chega. Filipe Melo estava sentado na Mesa da Assembleia da República, que dirige os trabalhos, como vice-secretário, à esquerda do presidente, José Pedro Aguiar Branco.
Estaria Filipe Melo a querer “flirtar” com Isabel Moreira e isto transforma-se numa polémica sobre piropos? De todo. Qualquer mulher sabe – porque já o experienciou – o que é não ser levada a sério, numa conversa séria, pelo simples facto de ser mulher. Os beijinhos têm como objetivo desnortear quem usa da palavra, assim como os apartes, funcionando como agressões para desviar o orador da sua linha de pensamento.
Vinda esta forma de assédio – é disso que estamos a falar, certo? – de um homem e dirigida a uma mulher, os beijinhos transportam, neste contexto, séculos e séculos de História e cultura condensados numa mensagem implícita que todas conhecemos bem: “Caladinha és mais bonita.” E o peso desta mensagem atinge todas nos seus gatilhos mais ou menos profundos. Para umas será serem constantemente interrompidas em reuniões de trabalho; para outras, a sensação bem real de não serem verdadeiramente ouvidas pelos parceiros, pelos pais ou por outros homens com quem têm laços afetivos; para outras ainda, algo bem mais terrível: a mensagem de silenciamento e culpa que lhes foi transmitida por um agressor sexual.
Quem ignora que o peso social deste tipo de assédio é muito diferente se dirigido a uma mulher ou a um homem nega o óbvio. Filipe Melo, aliás, sabe perfeitamente que assim é e qual a mensagem que transmitiu com os beijinhos. De outra forma, não teria desculpado a sua atitude, dizendo que não se dirigia a Isabel Moreira, mas a Rui Tavares, do Livre. André Ventura, ao defender o seu deputado, disse o mesmo. Mas de que forma os beijinhos atirados a Rui Tavares seriam menos desrespeitosos num plenário da Assembleia da República ou desnorteariam menos o interlocutor? Porque socialmente seriam vistos como uma piada entre dois homens (ainda que o destinatário pudesse não achar graça nenhuma), enquanto entre um homem e uma mulher são beijinhos carregados de passado e seus simbolismos.
De passado? Quem nos dera! Quem nos dera que este caminho que ainda “ontem” começou fosse esta estrada com retas e curvas, sim, mas sempre avançando, sem inversões de marcha. Direito de voto, direito universal ao divórcio, fim do estatuto de dependência do marido… Em Portugal só depois do 25 de Abril de 1974. Ontem.
Hoje, se as leis estão limpas de qualquer desigualdade entre homens e mulheres, sabemos bem que nem as ruas, nem os locais de trabalho, nem as casas de família fizeram ainda essa limpeza. Pior: estamos a regredir. O primeiro grande sinal veio em 2022, quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América revogou a decisão Roe vs. Wade, retirando assim o direito constitucional federal ao aborto.
Esses grupos nas redes sociais com milhares de homens, que partilham fotos e vídeos íntimos de mulheres sem o seu consentimento, alguns deles partilham das suas próprias esposas (este ano foi encerrado, no Facebook, o grupo italiano Mia Moglie, a minha mulher, com 32 mil membros), são beijinhos atirados a todas. Como se responde aos beijinhos? Como fez Isabel Moreira, de dedo apontado a Filipe Melo. Há limites!