Se tudo decorresse normalmente e a política tivesse lógica, o PS teria, neste momento, uma figura histórica do partido a correr para as presidenciais de 2026. Alguém que tivesse exercido cargos partidários e executivos, que já tivesse ganhado eleições e que representasse a história e a identidade do partido. Alguém com uma vasta experiência política, que os portugueses vissem como uma personalidade proba, íntegra, serena, moderada e competente e que os socialistas identificassem como representante dos valores tradicionais do PS, com provas dadas de militância e com notoriedade nacional, livre de anticorpos. Se tudo decorresse normalmente e a política tivesse lógica, o PS apresentaria, portanto, com entusiasmo e a máquina oleada, o seu antigo secretário-geral, António José Seguro.
Mas há muito tempo, talvez, desde 2015, que nem tudo decorre normalmente. E as lógicas que presidiam à política ter-se-ão alterado profundamente. Seguro é um candidato natural da área socialista. Cresceu com Mário Soares ao comando, foi o mais carismático secretário-geral de sempre da JS (no tempo em que as juventudes partidárias contavam para mais alguma coisa do que fazer barulho de claque em arruadas de campanha) e, nesse papel, conseguiu resultados práticos, para a juventude portuguesa, como o Cartão Jovem, em pleno cavaquismo. Foi, depois, secretário de Estado e ministro, nunca acusado de incompetência ou de protagonismo em casos e casinhos, foi líder da oposição no difícil tempo da Troika, ganhou umas eleições europeias, em 2014, por margem mais confortável do que a de Pedro Nuno Santos, em 2024, e tem um perfil institucional que o recomenda para Belém – a par de alguns outros, dentro e fora do PS, mas é dele que estamos a falar agora. E é a única personalidade capaz de se chegar à frente para resolver o problema do candidato presidencial do PS. Então, porque é que o PS se torce tanto na cadeira, em vez de o apoiar sem mais tergiversações? Porque é que figuras de peso como Augusto Santos Silva, Mariana Vieira da Silva ou o seu pai José Vieira da Silva o desprezam ou apoucam? E porque é que o seu próprio antigo secretário-geral adjunto, José Luís Carneiro, afirma que o partido tem “outras prioridades” em vez da questão presidencial?
É um mistério. É uma daquelas histórias de bastidores que talvez um dia venhamos a conhecer, nos seus contornos exatos, mas já deu para perceber que boa parte da “classe” ainda dominante no PS o odeia profundamente. Porque não tem qualidades. Porque não tem carisma. Porque não agrega a esquerda – apesar dos bonitos resultados que o “agregador-mor” das esquerdas, Pedro Nuno Santos, tem para apresentar. António José Seguro fez o seu próprio percurso na contestação interna a José Sócrates e incompatibilizou-se com todo o costismo. Depois, zangado com o mundo e com o partido, recolheu-se ao seu exílio nas Caldas da Rainha e tornou-se um pequeno empresário. Saiu da política e o abandono, inusitado para quem tinha crescido nela desde criança, parecia definitivo. Talvez os seus camaradas que agora não veem nele a figura óbvia para ajudar o PS a virar a página e a regressar às origens, o tenham esquecido, nalguns casos, respirando de alívio. Talvez não lhe perdoem o desprezo que votou à militância, desde que António Costa lhe roubou o lugar. E talvez concluam, agora, que toda esta permanência em pousio foi friamente planeada, com reserva mental, para que agora se imponha ao partido que o rejeitou. Talvez não lhe perdoem a desforra.
António José Seguro, por seu turno, talvez nunca tenha perdoado aos seus camaradas o facto de terem inventado umas primárias, abertas a simpatizantes, uma única vez – para correrem com ele –, sem que esse modelo jamais se tenha repetido. Mas os mais antigos lembram-se da sua oratória inspirada, enquanto líder da JS, e da forma como conhecia e dominava o aparelho. Aparelho que, em 2014 – lá vai o tempo!… –, estava com ele e não com António Costa. Sim, Seguro e o PS têm mútuas contas a ajustar. Ao final do dia, provavelmente, o seu partido não terá outro remédio senão apoiá-lo, contrafeito. Há um senhor que conhece bem a sensação: chama-se Marcelo Rebelo de Sousa. Entretanto, a esquerda, que rejeita Seguro, deve pensar bem se prefere, à segunda volta, optar entre Gouveia e Melo e André Ventura (ou entre o almirante e Marques Mendes) ou se o melhor a que tem para se agarrar é a este “indesejado”. A escolha poderia parecer simples.
Isto, se tudo decorresse normalmente e a política tivesse lógica.
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