Roubamos o título deste artigo a uma das “comédias irrepresentáveis” de Federico García Lorca porque o que nos aconteceu há justamente cinco anos, naquele março de 2020, também se tornou irrepresentável, impossível de levar ao palco, tal como Lorca dizia desta sua comédia trágica.
O palco da nossa consciência coletiva quis esquecer depressa a pandemia de Covid-19, deixar de contar mortos e novos casos, fartinhos de saber de cor nomes de variantes e subvariantes, um enjoo permanente das notícias sobre a vacinação, uma náusea de máscaras e álcool-gel. Foi como se a repulsa tivesse ocupado o lugar do medo, uma reação de aversão perante o que nos queria impedir a vida, o que nos confinava a um passar lento de horas a olhar para a janela, como num regresso ao passado mas cheio da cacofonia dos ecrãs.
O que nos levou para dentro de quatro paredes, há cinco anos, depois de vermos as terríveis imagens que nos chegavam do Norte de Itália, com idosos a morrerem em casa por falta de meios de socorro, não foi o decreto do Governo – foi o medo. Na verdade, mal o Executivo de António Costa decretou o encerramento das atividades letivas a partir de 16 de março de 2020, muitas escolas nem esperaram pela data estipulada e fecharam dias antes, tanto privadas como públicas.
E assim vivemos um ano, até à chegada das vacinas. Os primeiros meses de 2021 foram os mais mortíferos. O confronto com a possibilidade da nossa morte, a perda de entes queridos, o pânico de contagiar algum dos nossos e provocar-lhe danos fatais… Um medo individual, partilhado coletivamente, que, na fúria de nos vermos finalmente livres dele, nos fez como que cancelar tudo o que nos recordasse desses tempos.
Os efeitos da pandemia na saúde mental vão sendo estudados, sendo notórios os agravamentos de situações de depressão, ansiedade ou stresse crónico. Já os efeitos do trauma coletivo ainda carecem de muita análise.
Num trauma coletivo, explicou à BBC David Trickey, psiquiatra e representante do Conselho de Trauma do Reino Unido, a maneira como vemos o mundo, como nos vemos a nós e aos outros são abalados por um acontecimento que nos revira os “sistemas de orientação” e nos deixa com um forte sentimento de impotência. Também por essa razão, construímos novos significados sobre o mundo e não faltam estudos a apontar que, depois de certos traumas coletivos, cresce uma apetência por líderes fortes ou regimes autoritários – entendidos como uma forma de proteger uma certa identidade do grupo social.
Depois da pandemia da Covid-19 começou de imediato a guerra na Ucrânia, os preços dispararam, tivemos uma crise inflacionária, um violento e aterrador ataque do Hamas a Israel, com a consequente e desproporcional resposta, um crescimento dos populismos pelo mundo ocidental.
O planeta não está para existências pacíficas – na verdade nunca esteve –, mas estes cinco anos têm sido prolíferos em situações que nos deixam sem chão, atirados ao medo.
Federico García Lorca foi assassinado em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, cinco anos depois de escrever Assim que Passarem Cinco Anos. É muito mais do que uma peça sobre um homem à espera da noiva; é sobre a vida que se adia enquanto o tempo passa, sem contemplações.
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