O julgamento dos crimes de Mazan, uma localidade de seis mil habitantes, na periferia de Carpentras, no Sul de França, começou no princípio de setembro. De então para cá, o caso Gisèle Pelicot ‒ a mulher de 71 anos drogada e violada durante uma década pelo marido, Dominique, que recrutava, num site de sexo entretanto encerrado, outros homens para a violarem também ‒ foi-se tornando cada vez mais mediático. Felizmente, eu diria, apesar de se tratar de uma tenebrosa descida aos infernos, um triste exemplo do ponto onde pode chegar a miséria humana.
A força do testemunho da mulher francesa foi de tal ordem que, embora tenha dispensado protagonismos, Gisèle Pelicot acabou por se transformar numa heroína, involuntária, mas uma heroína. E, para uma boa parte das organizações e dos ativistas ligados à violência sexual, até um ícone feminista (não exagero, a expressão já é usada frequentemente, sobretudo pela imprensa francesa). Gisèle respondeu a quem, homem ou mulher, lhe chamou corajosa: “Não é bravura, é a vontade e a determinação em mudar a sociedade.” Na primeira vez que escrevi sobre o assunto, eu própria disse que ela deveria ser eleita a mulher do ano ‒ não sei se o vai ser, mas continuo a achar que deveria, se é que essa tradição de fazer balanços, uma lenta ponderação do tempo que passou, ainda faz algum sentido, no meio de tanto ruído e aceleração…
Esta semana, o Ministério Público francês pediu 20 anos para o ex-marido de Gisèle Pelicot, o que não constituiu propriamente uma surpresa, incluindo para a advogada de Dominique, que já aguardava a pena mais longa possível. Perante os factos, a defesa pouco mais terá a fazer do que procurar atenuantes na idade do réu (72). A sentença foi marcada para dia 20 de dezembro. O julgamento também está a ter consequências políticas: o primeiro-ministro, Michel Barnier, já disse que haverá um antes e um depois. Anunciou que, até ao final de 2025, serão simplificados os procedimentos para apresentar queixa de violência doméstica nos hospitais franceses.
Desde o começo que os advogados de Gisèle Pelicot apelaram à serenidade. Foi por insistência da vítima que o julgamento não decorreu à porta fechada. “Ficar de portas fechadas também significa pedir à minha cliente que seja trancada num lugar com aqueles que a atacaram”, justificaram então os causídicos. Gisèle foi dizendo que, apesar da fachada de ferro, por dentro se sentia “um campo de ruínas”. Numa das vezes em que foi ouvida, também explicou querer acabar com a vergonha associada às vítimas de violação. Com uma calma impressionante, disse: “Desejo que as mulheres digam: a senhora Pelicot fez isso, nós também conseguimos fazê-lo. Quando uma mulher é violada, há vergonha, mas não nos cabe a nós sentir essa vergonha, cabe-lhes a eles.”
Ao longo dos últimos três meses, realizaram-se várias manifestações de apoio e operações de crowdfunding para ajudar a recolher verbas. À porta do tribunal de Avignon, Gisèle Pelicot foi aplaudida, levaram-lhe ramos de flores. Chegou a usar um lenço que lhe foi enviado da Austrália por uma organização ligada à violência sexual, especificamente, sobre mulheres mais velhas. O ex-marido, toda a vida considerado um pai e um avô extremoso, confessou os crimes: “Sou um violador.” A maioria dos outros 50 homens, que também se sentam no banco dos réus, alegou que Dominique havia consentido tudo. Veem-no como fiel proprietário do corpo da mulher que, durante dez anos, tornou inerte com ansiolíticos e comprimidos para dormir.
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