Numa das mais emblemáticas cenas da série House of Cards, a personagem de Kevin Spacey, Frank Underwood discute com a mulher como pode ganhar as eleições, estando em grande desvantagem na corrida. E é Claire (Robin Wright) quem lhe dá a solução, infalível e implacável: “Se vamos fazer isto, vamos fazê-lo para nosso proveito.” “Criando o caos?”, pergunta Frank. “Mais do que caos. Medo”, responde Claire.
Na altura em que o leitor estiver a ler estas linhas, já saberemos se a estratégia é vencedora na vida real (na série foi tiro e queda). Porque o delírio desta última semana de eleições na América teve os dois ingredientes – caos e medo – servidos em doses magnânimas.
A ciência do medo diz-nos que, perante uma situação que consideramos ameaçadora, uma crise económica ou social, as pessoas tendem a ficar mais conservadoras. “O conservadorismo político é motivado pela cognição social [o processo de interpretar, analisar e armazenar informações sobre relações sociais]. E há muitas evidências, já estudadas, de que os liberais políticos se tornam mais conservadores, politicamente e psicologicamente, depois de ameaças”, lê-se no estudo Threat causes liberals to think like conservatives, publicado no Journal of Experimental Social Psychology.
Ao sentirem-se vulneráveis perante uma situação que não controlam, em períodos de incerteza, as pessoas tendem a recolher a uma posição de cautela, de aversão ao risco. E a eficácia da criação de um inimigo está por demais demonstrada ao longo da História – dos judeus na Alemanha nazi à “guerra ao terror” no Iraque. Vamos agora chegar à deportação em massa de imigrantes, ilegais e legais, que promete Donald Trump, de forma tão veemente que eleva o tópico à categoria de primeira prioridade, prometendo a deportação para o “Dia 1” do seu próximo mandato como Presidente dos Estados Unidos da América.
É o jogo do medo contra aqueles que, segundo Trump, andam a “comer os nossos cães, os nossos gatos, os nossos animais de estimação”. Pode dizer-se tudo, não é verdade? A liberdade de expressão é intocável nos EUA e, debaixo das suas asas protetoras, ouviram-se as piores coisas.
Um racismo sem travão (segundo Donald Trump, os imigrantes estão a “desencadear uma violenta onda de assassínios em toda a América”), um machismo irrespirável (o candidato diz que vai “proteger” as mulheres norte-americanas, “quer as mulheres gostem ou não”), um ódio traduzido em insultos à sua oponente, sempre com entrelinhas baseadas em preconceitos racistas, chamando-a de “preguiçosa”, “lenta”, “estúpida”, com “baixo QI”. “Ela bebe ou mete-se nas drogas?”, perguntou num comício.
São as ruínas de uma liberdade de expressão que inclui incitamentos declarados à violência contra um grupo. “Para me matar, alguém deveria disparar através dos jornalistas presentes, e isso não me desagradaria tanto assim.” Palavras de Trump, outra vez.
Neste caos, que nada estanca, semeia-se livremente o medo de tudo o que não é norte-americano, branco e conservador. Na narrativa dos últimos dias domina a ideia de que, se Kamala ganhar, é porque houve fraude eleitoral. Voltamos a 2020. Prepara-se o terreno para uma eventual perda e provavelmente o ataque ao Capitólio, em janeiro de 2021, foi apenas um ensaio para a violência. Se for Trump a ganhar, pacifica-se esta gente? De todo! Caos, medo e ódio são grandes motores da vida, com raízes profundas que não quebram ao vento.
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