Quando menos esperamos, somos confrontados com uma situação ou uma realidade que nos leva muito alem do que ela representa de forma imediata. Numa tarde de sábado, acolhendo umas colegas da universidade, fui a uma conhecida casa de samba em São Paulo, o Bar Samba. Na longa parede que acolhe o palco onde os músicos se espraiam nos acordes rítmicos, um imenso mural retrata a vida sambística de uma comunidade. São mais de duas dezenas de figuras, umas representando personagens importantes do samba, outras, “apenas”, figuras típicas, caricaturas da população de uma comunidade pobre onde a música é o elo aglutinador. Tratando-se de uma comunidade claramente marcada pelo samba, quase todas as figuras representam personagens negras ou mulatas.

Duas figuras se destacam pela brancura da pele. Ao centro, materializando a imagem de Vinícius de Moraes no “Samba da Benção”, como “o branco mais negro do Brasil”, o painel mostra-nos um engravatado e respeitável senhor a tocar violão, bem no centro de todo um grupo com o qual contrasta, mas também se integra. Ao longe, no topo do lado esquerdo, ao nível do varandim superior, o outro branco da composição pictórica: não toca, nada o remete para a música, a não ser o ar de prazer que lança no ar, refastelado no interior de uma banca, com uma cerveja e, atrás, ao longe, um poster de uma mulher nua. Prazeroso, claramente contente, este branco que está afastado, fora do arraial, mas integrado na comunidade, é identificado por uma tatuagem no braço esquerdo: a Cruz de Cristo diz-nos de imediato que aquele branco, com ar bonacheirão, meio careca e com um farto bigode, é um “Mané”.
Dando-nos uma imagem esplendida da forma como a cultura popular criar as imagens do coletivo, caricaturando as linhas que identifica como principais, este mural é mais um fruto da representação que o século XX brasileiro fez do imigrante português. Originariamente pobres e iletrados, muitos deles com o nome “Manuel”, donos de pequenos comércios, especialmente padarias, estes humildes negociantes, bem integrados nas comunidades, foram alvo de um riquíssimo anedotário que os menorizava, colocando-os num patamar de ridicularização social.
Especialmente no Rio de Janeiro, com o cruzamento de influências várias, o “Zé Mané” é a imagem do tolo, daquele que não tem competências para a vida, dando valor ainda mais forte ao “Mané” português, tantas vezes apodado de burro nesse anedotário.
A matriz da imigração portuguesa para o Brasil foi, durante quase dois séculos, constituída por indivíduos analfabetos, de origem rural, com fraca cultura, permitindo a criação de estereótipos de sabor humorístico marcados pela caricatura. O anedotário representa sempre um desejo comunitário de marcar, de rotular e de colocar ao “outro” uma roupa que se quer nunca mais venha a ser despida. Mas Portugal mudou bastante e, inevitavelmente, a imigração portuguesa para o Brasil, também.
O atual fluxo de migração de Portugal para o Brasil já não é rural e, muito menos, analfabeta. Os jovens adultos portugueses que hoje demandam por novas paragens, em busca de uma vida melhor, são cosmopolitas e, sobretudo, têm uma formação académica elevada.
Acresce, ainda, que os novos fluxos migratórios são já fruto de um tempo em que as ligações não se perdem com a distância geográfica. A saudade já não é hoje vivida como era há 50 ou mais anos. O migrante que hoje vem de Portugal para o Brasil, pode ir visitar os seus familiares e amigos todos os anos, e pode falar com eles diariamente. Não há a separatividade de outros tempos. A nostalgia é hoje compensada por formas novas de conectividade.
Paralelamente a esta mudança radical na matriz da imigração portuguesa para o Brasil, teve lugar uma dupla modificação nos movimentos populacionais de sentido inverso. Por um lado, a partir da última década do século passado, Portugal começou a receber imigrantes brasileiros. Esta foi uma realidade completamente nova, num quadro marcado por dois séculos de movimentações de demográficas apenas de Portugal para o Brasil. Por outro lado, esse fluxo populacional dos anos noventa, pouco tem a ver com o fluxo migratório brasileiro para Portugal, que se vive hoje. Se, o primeiro era constituído, fundamentalmente, por trabalhadores com fraca formação escolar, hoje, Portugal atrai quadros com uma formação superior, artistas, empresários e investidores.
A imigração de brasileiros para Portugal tem hoje um grau de complexidade que se encontra na possibilidade de muitos cidadãos brasileiros obterem a cidadania portuguesa. De facto, muitos dos brasileiros são luso descendentes, podendo facilmente atestar que são netos de portugueses, conseguindo, desta forma, uma cidadania portuguesa quase automática.
A cidadania portuguesa está longe de se conseguir através de um processo “democrático”. Especialmente, são necessários meios financeiros para a investigação, para os advogados, para toda uma complexidade burocrática que não está a mão dos mais humildes luso descendentes. Mais uma vez o movimento populacional do Brasil para Portugal, tem uma forte componente de elite, mostrando-nos que estamos perante fatias diferenciadas da população.
Numa soma, para a qual não há números exatos, entre imigrantes brasileiros, e cidadãos portugueses nascidos no Brasil, o número de pessoas que hoje vivem em Portugal, tendo nascido no Brasil, não deve estar muito abaixo do milhão de pessoas.
Os netos dos “Manés” estão a regressar a Portugal ou, pelo menos, a recuperar a cidadania portuguesa, como aposta num futuro de maior estabilidade e prosperidade. Fechando o círculo, os netos regressam ou procuram obter o tão famigerado passaporte em tons “vinho”.
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