Preciso de fazer uma declaração de interesses prévia. Antes de o leitor me dispensar a sua atenção, fique a saber que sou defensor de uma economia de mercado e que acredito que este se autorregula. Não obstante, também acredito que o Estado tem uma função de intervenção na economia para corrigir externalidades, sejam elas positivas ou negativas. Ou seja, no meu entender, o Estado deve exercer o seu poder apenas com uma função meramente corretiva, e quando identificar uma falha incorrigível de mercado.
Partindo desta posição, importa notar que vivemos num mundo cada vez mais digitalizado, onde a Inteligência Artificial (IA) tem o potencial de vir a tornar-se – se não se tornou já – um pilar fundamental para o avanço tecnológico e a inovação. A capacidade de sistemas, máquinas ou softwares aprenderem com os seres humanos e realizarem tarefas complexas com uma eficiência sobre-humana é, sem dúvida, um marco na história da humanidade.
Contudo, com grande poder vem também uma grande responsabilidade. E a necessidade de estabelecer limites torna-se imperativa para garantir a ética e a segurança de qualquer nova tecnologia, seja a IA ou qualquer outra.
No caso concreto da IA, existe um potencial de revolucionar inúmeros setores: desde a Saúde, onde pode ajudar a diagnosticar doenças com uma precisão nunca alcançada, até à Justiça, onde pode analisar em minutos um conjunto de decisões proferidas anteriormente sobre processos similares; ou mesmo na Agricultura, onde irá, certamente, otimizar a produção e reduzir o desperdício alimentar, ou no setor da Indústria, onde irá aumentar a capacidade de produção e a eficiência. Até no setor dos Serviços a IA não tardará a proporcionar experiências cada vez mais personalizadas e dirigidas a cada consumidor.
No entanto, para que a IA consiga atingir todo o seu potencial, há uma série de questões complexas que se levantam: o processamento de grandes volumes de dados pessoais, a capacidade de os sistemas de IA decidirem de forma autónoma, a possibilidade de manipulação dos comportamentos sociais. A IA pode perpetuar preconceitos, de forma propositada ou não, através de uma falha de programação dos algoritmos, invadir a privacidade dos utilizadores, de modo a “conhecê-los” melhor e aprender com os seus comportamentos, ou até mesmo causar danos, mediante a transmissão em grande escala de informação e conhecimentos errados e com pouca adesão à realidade.
Tudo isto se não for devidamente regulada. E isto apesar das críticas que muitos apresentaram ao seu Regulamento. À cabeça, a que diz que este será uma limitação à inovação e que coloca a União Europeia fora do mercado digital e da capacidade de inovar.
Vamos por pontos, que o tema é complexo e convém não nos perdermos: primeiro, são de realçar todas as referências ao facto de o ser humano estar no centro de qualquer atividade económica, feitas no Regulamento. E, pessoalmente, não tenho quaisquer dúvidas em louvar o trabalho feito pela União Europeia ao procurar estabelecer um quadro regulatório para a IA, através do denominado AI Act. Isto porque ao ler o AI Act, que está longe de ser um documento perfeito e imutável, é clara a procura do equilíbrio entre a inovação e a proteção dos direitos fundamentais dos utilizadores. Os sistemas de IA são classificados com base no risco que representam, numa graduação de 4 estágios, e são impostos requisitos proporcionais ao potencial de desrespeito pelos direitos fundamentais dos utilizadores.
E não se diga, como muitos procuram defender, que a regulamentação sufoca a inovação e constitui um obstáculo ao seu normal desenvolvimento. Basta pensar na resistência que existiu à obrigatoriedade do uso do cinto de segurança durante a condução, ou à proibição de fumar em espaços fechados, para perceber que quando o ser humano é o foco e o fundamento da regra, esta acaba por ser acatada e aplicada.
É por isso que o AI Act constitui um exemplo pioneiro de como a União Europeia ajudará a moldar o futuro de forma a maximizar o potencial da IA, minimizando os riscos associados e garantindo, acima de tudo, que são respeitados valores éticos e os direitos humanos.
É que pode ser cliché, mas talvez não seja demais repetir: é a tecnologia que deve servir a humanidade ao invés de servir-se dela para se desenvolver.
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