As fotografias das homenagens às vítimas do atentado terrorista no Crocus City Hall, em Moscovo, não são muito diferentes das que, há cerca de um mês, observámos nos memoriais dedicados a Alexei Navalny, o opositor em quem o Ocidente depositou esperanças e que acabou morto numa prisão da Sibéria. Para um português, essas imagens têm ainda o simbolismo de, não raras vezes, ser possível ver nelas cravos vermelhos, que ficarão para sempre ligados ao 25 de Abril. A transição portuguesa marcou o início da terceira vaga de democratização do século XX, segundo o cientista político Samuel Huntington.
Huntington morreu em 2008 e, depois d’A Terceira Vaga (1991), lançou outro livro que também teve muita repercussão. Chama-se O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial (1996) e tem como argumento principal a ideia de que, após a Guerra Fria, seriam as “civilizações” – as questões culturais e religiosas – que, daí em diante, conduziriam a política global. A tese, controversa, sofreu inúmeras críticas, embora o mundo no pós-11 de Setembro tenha dado uma certa razão ao autor americano.
Graças às alterações constitucionais que habilmente foi fazendo, Putin governa desde 1999 (entre 2008 e 2012, a presidência esteve a cargo de Dmitry Medvedev, para evitar mandatos sucessivos). Há gerações de russos que só conheceram Putin como líder dos destinos do país. Depois do caos económico dos anos 90, o antigo oficial do KGB impôs-se sobretudo com a promessa de travar a inflação e de, é sabido, restabelecer a ordem. Nessa medida, a guerra na Ucrânia constituiu, nas palavras da jornalista Valerie Hopkins, que cobre a Rússia para o New York Times, “uma enorme rutura nesse contrato social de ‘não te envolvas na política, que eu providencio-te segurança e um Estado razoavelmente operacional’”.
Para a população russa, os terríveis acontecimentos do Crocus City Hall podem também significar que, mesmo aceitando as premissas com que Putin governa, a garantia de segurança pode não estar assegurada. Tal como, em outubro de 2002 (Putin tinha 50 anos e governava há três), o ataque ao teatro Dubrovka provocou uma escalada no conflito tchetcheno, o atentado de 22 de março de 2024 produzirá uma intensificação da guerra no território ucraniano.
Sintoma disso são as primeiras reações de Putin, que não perdeu tempo a estabelecer a ligação entre a Ucrânia e os autores do atentado, reivindicado pelo Daesh, autoproclamado Estado Islâmico. A propaganda pró-regime também está a tentar fazer vingar a versão de que os suspeitos foram recrutados no Tajiquistão pela embaixada ucraniana. Nas entrevistas que realizou, a jornalista do New York Times não encontrou quem acreditasse nessa narrativa, embora admita que, perante o medo e a ameaça, uma parte da população esteja disposta a aderir à tese. De resto, não seria a primeira vez que, na história da Humanidade, um líder se tornava popular por garantir segurança. Apesar da guerra na Ucrânia, a liberdade é um valor que muitos continuam a tomar como garantido na Europa, mas múltiplas regiões do mundo existem em que os cidadãos – “gente como nós” – abdicaram de ser livres para se sentirem seguros.
Não sendo a Rússia uma sociedade aberta, os últimos anos têm demonstrado ser impossível afirmar que o que se passa na Rússia fica apenas Rússia – sobretudo no que diz respeito ao jogo de luzes e sombras da estratégia europeia em relação à guerra na Ucrânia. Reeleito há menos de duas semanas, Putin não perdeu tempo no passa-culpas do atentado de Moscovo. Também o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, largou o eufemismo da “operação militar especial”, assumindo, pela primeira vez, que o país estava em “estado de guerra”. A Putin, o conquistador sem escrúpulos, interessa tirar todos os dividendos, mesmo que, por detrás do ataque do Daesh, até possam estar as motivações invocadas por Huntington. Tudo em prol da guerra.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ O sistema, o jornalismo e a água do banho
