A confiança nas instituições é essencial para a credibilidade do regime democrático. Só que essa confiança, como sabemos, não é adquirida nem permanente. Precisa, isso sim, de ser ganha e renovada em todos os momentos – tanto nos assuntos decisivos como naqueles que, à primeira vista, podem parecer menores. Em especial num tempo em que, cada vez mais, aquilo que antes parecia secundário acaba agora por invadir, com frequência, o espaço público, dominando as atenções e os debates. A distância entre o pequeno erro e o grande escândalo – ou entre o “caso” e o “casinho”, segundo a nomenclatura que, há meses, criou raízes – é cada vez menor. E, por isso, maior atenção precisa de ser dada aos fatores essenciais que constroem ou corroem a relação de confiança existente entre os cidadãos e as instituições. Basicamente estas: rigor nas decisões, critérios objetivos de atuação e transparência nos seus procedimentos.
Tudo isto vem a propósito de dois casos que, aparentemente longínquos entre si, acabam por estar ligados, por aquilo que representam face à desconfiança nas instituições: as críticas públicas do canoísta Fernando Pimenta aos critérios que Marcelo Rebelo de Sousa tem usado no elogio público das prestações desportivas de algumas modalidades e o reconhecimento, num anúncio-choque, de um enorme “buraco” financeiro na todo-poderosa Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que vai obrigar a mudanças drásticas na instituição – um caso flagrante de falta de transparência numa organização que, pela sua história e pela sua função, deveria ser à prova de qualquer suspeita.
O primeiro caso merece uma atenção especial por aquilo que representa para um Presidente da República que desde o início – e de forma acertada, tendo em conta o legado do seu antecessor – quis distinguir-se pelos “afetos”. No entanto, como o canoísta triplo campeão do mundo quis demonstrar-lhe, os “afetos” de Marcelo também têm de ser distribuídos com o mesmo rigor e o mesmo critério que ele utiliza, por exemplo, no veto de um diploma ou no envio de uma lei para o Tribunal Constitucional.
Ao contrário do que acontece no Direito, no desporto não há interpretações subjetivas ou diferentes. Numa prova ou num jogo, ganha quem foi mais rápido, saltou mais longe ou marcou mais golos. E, além disso, há uma hierarquia estabelecida e comummente aceite sobre a importância de cada competição, e os graus de superação e de dificuldade necessários à conquista de um título ou de uma medalha, nuns Jogos Olímpicos, num mundial, num europeu, num torneio do Grand Slam ou numa grande volta ciclista em relação a uma infinidade de outros torneios internacionais. Por isso, se o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa tem o direito de vibrar mais com as modalidades e os desportos da sua preferência, já o Presidente da República tem o dever de saber distinguir como agraciar cada atleta, segundo critérios objetivos sobre a importância de cada prova.
Embora possa parecer um assunto menor, a verdade é que Marcelo devia prestar atenção à crítica feita por Fernando Pimenta. Porque o reparo do canoísta não foi um desabafo irrefletido, mas sim a verbalização pública de um sentimento que, embora em surdina, é cada vez mais generalizado entre atletas e responsáveis desportivos em Portugal, que se queixam da dualidade de critérios em Belém.
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