Se o Papa Francisco fosse um líder político, diríamos apenas que é muito hábil nos soundbites. Como em Jorge Bergoglio se reúnem o poder temporal e o poder espiritual, dizemos que é um excelente criador de ensinamentos para a vida. Das inúmeras frases que proferiu na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), menos improvisadas do que à primeira vista poderia parecer, sobressaem duas. Uma mais virada para o interior da instituição e respetiva hierarquia: “Na Igreja, há lugar para todos.” Outra mais virada para o exterior: “Só é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo para a ajudar a levantar-se.”
Apreciações há para todos os gostos, e ainda bem. Vivemos num mundo livre, e é precisamente por a liberdade estar ameaçada em tantos sítios que se torna urgente sublinhar a importância da liberdade de expressão (incluindo a religiosa, já agora). Entre os crentes, uma ala mais conservadora desespera por ver o seu credo convertido num manancial de frases rápidas e diretas, repetidas pelo Sumo Pontífice, qual estrela pop, com plena consciência da força da palavra, do ritmo, da ênfase e da entoação na transmissão da mensagem.
Nada de surpreendente – é mais do que compreensível numa instituição milenar. Não é só por desafiar os poderes instituídos que Francisco incomoda; é também por abalar os alicerces de uma cultura empedernida em que as emoções são deixadas do lado de lá da porta da religião. No mundo ruidoso onde vivemos, para Bergoglio o fundamental é passar a mensagem. E não é apenas ao recetor que compete estar à altura da mensagem. Num mundo secularizado, o Papa sabe que é o emissor que tem a responsabilidade de garantir que a mensagem chega ao destinatário. Não há melhor exemplo daquilo que digo, julgo, do que a proibição das missas em latim, em que Francisco tem insistido – uma língua essencial do ponto de vista cultural e civilizacional, mas uma língua morta, sem falantes!
Entre ateus e agnósticos, diga-se de passagem que também há os que se eriçam com as frases de Francisco e, sobretudo, com as suas semelhanças em relação às lições inspiracionais de autoajuda. Ambas as posturas, as dos crentes e as dos não-crentes, se confrontam com a realidade dos factos. E a evidência do milhão e meio de peregrinos (segundo fontes do Vaticano) que, no fim de semana passado, se deslocaram ao Parque Tejo. Estando de boa-fé – isto é, disponível para olhar os outros e a diferença –, não é possível ignorar a energia daquela massa de gente, vinda dos quatro cantos do mundo, com vontade de construir um planeta melhor.
O que fazer com essa força transformadora saída da JMJ Lisboa 2023? Diz o povo que santos da casa não fazem milagres e do futuro só Deus sabe. Francisco tem uma estratégia para mudar a Igreja e tem-na defendido com todas as letras. “O clericalismo é uma peste”, afirma, sem ambiguidades. Em Roma, para a revolução que parece querer operar na Igreja, vai ser importante a Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, em outubro, na qual não bispos terão direito de voto pela primeira vez. A bem de todos, há que manter a esperança num milagre de Francisco. Para a Igreja portuguesa, que nesta semana conhece o nome que sucederá ao cardeal-patriarca Manuel Clemente, não fazer nada da mobilização que, por estes dias, se viveu em Lisboa seria uma desilusão. Seguindo o exemplo de Francisco, e agora usando uma imagem do desporto-rei, uma frustrante goleada.
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