O que terão em comum leveduras, bebidas alcoólicas como a cerveja, e descobrir como é regulada a divisão celular? Como poderão ler nos parágrafos seguintes, bastante.
As leveduras mais frequentemente utilizadas em investigação científica são fungos do género Saccharomyces. O nome deriva da junção das palavras “saccharon” (acúcar) com “myces” (fungo), do Grego antigo. As duas espécies mais utilizadas são a Saccharomyces cerevisae e a Saccharomyces pombe. O isolamento destas últimas terá ocorrido em finais do século XIX, a partir de um tipo de cerveja africana. No caso, “pombe”, o nome significa precisamente cerveja, em swahili.
A Saccharomyces cerevisae, também denominada “fermento de padeiro”, terá sido isolada a partir da pele dos bagos de uva, é comummente utilizada em processos de fermentação envolvidos na produção de cerveja, pão e vinho. Durante a fermentação, liberta dióxido de carbono, contribuindo assim para o crescimento da massa do pão. No caso do vinho ou da cerveja, a Saccharomyces cerevisae converte os açucares em álcool etílico, gerando ainda compostos secundários que dão sabor às bebidas.
Revelador da capacidade criativa dos cientistas, a utilização de leveduras contribuiu para a descoberta de novos alvos terapêuticos para o tratamento do cancro, nomeadamente o cancro da mama. A ciência aprende (inclusive do estudo da cerveja ou do pão), analisa, interpreta e contribui para a resolução de problemas
Estas espécies de levedura, que se afastaram evolutivamente, uma da outra, há mais de 300 milhões de anos, são modelos amplamente utilizados na biologia celular e concretamente no estudo dos mecanismos de divisão celular. A escolha de modelos celulares (ou outros) para estudar características biológicas, ou mesmo propriedades do cancro, obedece a diversos critérios, como o tamanho do organismo/célula, a velocidade do ciclo reprodutivo, a facilidade de manutenção e manipulação, a genética e o potencial económico do seu estudo. No caso destas espécies de levedura, cumprem quase todos estes critérios. São pequenas, de fácil manutenção, têm potencial económico, dividem-se rapidamente (a S. cerevisae a cada 2 horas, a 30 graus centigrados) e são facilmente manipuláveis geneticamente, permitindo estudar a função de genes e proteínas, nomeadamente na regulação da divisão celular, rápida e eficazmente. Na verdade, as leveduras foram primeiro introduzidas como modelos celulares, precisamente para estudar a divisão celular, por Murdoch Mitchinson, nos idos anos 50 do século XX.
Mas o que entendemos, então, por “divisão” ou “ciclo” celular, e porque estudá-lo é relevante para o cancro? A divisão celular é um processo de multiplicação no qual uma célula, denominada parental, se divide e origina duas células filhas. No caso das células eucarióticas, as nossas, e também as das leveduras, para uma divisão celular estar completa e sem erros, é necessário copiar de forma fidedigna o genoma (a informação genética armazenada nos cromossomas) para que as células filhas recebam uma cópia íntegra da informação genética. De forma simplificada, a divisão celular ocorre essencialmente em quatro fases ou etapas. Durante a chamada fase “S” (de “síntese” do DNA), ocorre a duplicação dos cromossomas e durante a fase “M” (de Mitose) a sua separação. A fase que antecede a fase S denomina-se fase G1 e a fase anterior à Mitose denomina-se G2. As fases G1 e G2 (do Inglês, “growth”, crescimento), são fases de crescimento celular que garantem a síntese de RNAs e proteínas (G1) algumas das quais (como a “tubulina”, produzida durante a fase G2) são essenciais para a separação física dos cromossomas duplicados durante a fase S. Para as células avançarem no ciclo celular, existem pontos de verificação ou restrição, que garantem as condições apropriadas para completar a divisão celular. Como escreveu Paul Nurse, incontornável cientista na área do ciclo celular: “Para garantir que cada célula filha recebe um genoma completo e sem erros, o início e a progressão das fases S e M são controlados de forma a que que ocorram na sequência correcta a cada ciclo celular, têm pontos de verificação e de correção para erros e estão coordenadas com o crescimento das células”. Se existirem problemas em algum destes pontos, a célula pára o ciclo no ponto de verificação que antecede a fase seguinte.
Ora o que tem tudo isto a ver com as leveduras, e com o cancro?
No final dos anos 70 do Século XX, Lee Hartwell, com s.cerevisae, utilizou uma forma engenhosa de identificar mutantes para proteínas que regulam o ciclo celular: identificou e isolou mutantes sensíveis a temperaturas nas quais não conseguiam completar uma divisão celular, ficando parados numa das fases mencionadas anteriormente. O isolamento e estudo de tais mutantes veio permitir a identificação de proteínas que estavam envolvidas na entrada e na transição entre fases do ciclo celular, nos tais pontos de verificação ou restrição. Estudos posteriormente realizados por Paul Nurse vieram precisamente permitir a identificação de proteínas específicas, e indispensáveis, para que cada célula consiga realizar a sua divisão celular de forma controlada e rigorosa, passando sem qualquer restrição os pontos de verificação. Os estudos destes dois cientistas, bem como os de Tim Hunt (que descobriu uma das proteínas essenciais na transição entre fases do ciclo, a “ciclina”), culminaram na atribuição, aos três, do Prémio Nobel em Fisiologia e Medicina em 2001, pela descoberta “de reguladores essenciais do ciclo celular”.
Em células de cancro, existem frequentemente mutações ou alterações nos genes e consequentemente na função das proteínas que regulam a entrada, a progressão e os pontos de verificação do ciclo celular. Assim, as células do cancro realizam, frequentemente, divisões celulares com erros resultando em células filhas com duplicação de cromossomas, perda de pedaços de cromossomas, entre outro tipo de alterações moleculares. Tais alterações podem resultar na activação de oncogenes, deleção de genes supressores de tumores, levando à expansão de células malignas e consequentemente ao aparecimento e à progressão de diferentes tipos de cancro.
A descoberta de proteínas que controlam o ciclo celular levou mais recentemente ao desenvolvimento de terapêuticas dirigidas precisamente contra esses fatores, e para o tratamento de diferentes cancros. Em concreto, estas estratégias melhoraram o “outcome “clínico de doentes com cancro da mama resistente a inibição dos receptores hormonais, tornando-se recentemente uma alternativa terapêutica bastante utilizada.
Revelador da capacidade criativa dos cientistas, a utilização de leveduras contribuiu para a descoberta de novos alvos terapêuticos para o tratamento do cancro, nomeadamente o cancro da mama. A ciência aprende (inclusive do estudo da cerveja ou do pão), analisa, interpreta e contribui para a resolução de problemas.
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