Quando recebemos a notícia de que alguém próximo ou que conhecemos tem cancro, muitas vezes, surge a pergunta se há mais casos na família. Temos quase como certo que o cancro “passa” de pessoas para pessoas. Na verdade, estima-se que apenas cerca de 10% dos cancros sejam hereditários. No entanto, o Cancro pode ser definido como uma doença genética. Não por ser hereditário, mas é genético porque ocorre em consequência de danos/erros no DNA, nos genes, das células afetadas. Este conceito é agora amplamente aceite pela comunidade científica, após várias décadas de escrutínio. Ou seja, danos no DNA causados por luz ultravioleta ou outros carcinogéneos, como o fumo de tabaco, por exemplo, e a impossibilidade de os reparar, estão na génese de vários cancros.
Relativamente aos cancros hereditários, somente nos idos anos 90 do século passado foi possível demonstrar que determinadas alterações genéticas, no DNA, poderiam ser herdadas. O trabalho e a vida de Mary-Claire King, professora e investigadora da Universidade de Washington nos EUA, foi fundamental para esse avanço científico. Questionando o porquê de certas famílias terem, claramente, maior incidência de determinados cancros, o seu trabalho culminou na descoberta da região no nosso genoma onde se localiza um gene denominado “Brca1” (do Inglês “Breast Cancer gene”) que é transmitido geneticamente, e que mais tarde veio a ser associado a um risco aumentado de cancro de mama e do ovário por mutações na sua sequência. Hoje estima-se que mutações nos genes Brca1 (e Brca2, descoberto posteriormente) são responsáveis por cerca de 5% dos casos de cancro da mama e cerca de 25% dos casos de cancro da mama hereditário. Mulheres com mutações nos genes Brca1 ou Brca2 têm um risco aumentado de desenvolver um cancro da mama ou ovário que pode ultrapassar os 50%, ou seja, 1 em cada 2 destas mulheres poderá desenvolver um cancro da mama ou do ovário.
O exemplo sobejamente conhecido da atriz Angelina Jolie veio chamar a atenção do público em geral para o interesse da pesquisa do risco genético na prevenção de certos cancros
A relevância científica de Mary-Claire King foi muito além da extraordinariamente importante descoberta do gene Brca1, tendo contribuído para a implementação de programas de rastreio de risco genético. Anos mais tarde, o exemplo sobejamente conhecido da atriz Angelina Jolie veio chamar a atenção do público em geral para o interesse da pesquisa do risco genético na prevenção de certos cancros. Em fevereiro de 2013, aos 37 anos, Angelina Jolie foi submetida a dupla mastectomia radical (remoção de ambas as mamas) e, dois anos depois, à remoção de um dos seus ovários após saber que – por ter herdado uma mutação no gene Brca1- tinha um risco de 87% de poder desenvolver cancro da mama e um risco de 50% de poder desenvolver cancro do ovário. A sua mãe e tia faleceram de cancro do ovário e da mama, respetivamente. Este e muitos outros exemplos vieram confirmar a importância de certas mutações nos genes Brca1 e Brca2 na génese de cancros da mama e ovário, tendo contribuído para a implementação de consultas de risco genético na maior parte dos Hospitais e Centros Académicos dedicados ao diagnóstico, investigação e tratamento do cancro. A título ilustrativo, no IPO de Lisboa, a Equipa de Fátima Vaz (Oncologista) descobriu, em 2007, uma alteração genética específica de famílias portuguesas no gene Brca2 com risco aumentado para cancro de mama e ovário, no contexto da consulta de risco genético e o respectivo acompanhamento das doentes e seus familiares. Este tipo de trabalho, pioneiro e de enorme relevância, ilustra de forma clara a importância das descobertas de Mary-Claire King.
Permanece a pergunta: mas de que forma as alterações nos genes Brca contribuem para um aumento do risco de cancro? Para isso, temos de recuar uns anos e discutir uma propriedade fundamental do cancro: a incapacidade de reparação de danos/erros no DNA.
Questionando a estabilidade e resistência do DNA, que por transportar a informação genética das células se acreditava ser quase indestrutível, o investigador sueco Tomas Lindahl realizou nos anos 70 do século passado, experiências fundamentais onde a exposição a diferentes condições demonstrava que afinal o DNA não era tão resistente como se imaginava. Em conjunto com o trabalho de Paul Modrich e Aziz Sancar estes cientistas permitiram compreender de forma detalhada como as células reparam danos no seu DNA, após exposição a diferentes agentes incluindo radiação e diferentes carcinogéneos, mostrando também que essa reparação só é possível até um determinado limite. As suas contribuições abriram vários campos de estudo, tais como a investigação da importância dos mecanismos de reparação de DNA na manutenção da integridade do genoma (o código genético completo de cada célula), a importância das mutações para a origem do cancro e de outras doenças, e para o desenvolvimento de terapias específicas. Estes Investigadores receberam pelas suas contribuições acerca dos mecanismos de reparação de DNA, o Prémio Nobel da Química em 2015.
Voltando às mutações nos genes Brca1 e Brca2 e ao risco aumentado de cancro, sabe-se agora que as proteínas codificadas por estes genes desempenham um papel fundamental nos mecanismos de reparação do DNA. Em concreto, células expostas a um determinado agente com potencial carcinogéneo sofrem danos no seu DNA. As proteínas produzidas a partir dos genes Brca1 e Brca2 são recrutadas para os locais onde ocorreu o dano, contribuindo para o seu reconhecimento e a sua reparação. Em células com mutações nos genes Brca (como os casos dos cancros hereditários) as proteínas produzidas a partir das sequências alteradas desses genes perdem a capacidade de reparação do DNA, levando à acumulação de alterações genéticas nas células afectadas. A instabilidade genética nessas células aumenta, podendo levar a outras alterações genéticas que favorecem a sua expansão em detrimento de células normais, levando ao aparecimento de um cancro. Pessoas com mutações nos genes Brca1 ou Brca2 expostas a luz UV, por não conseguirem reparar os danos causados DNA das células da pele, desenvolvem cancros da pele com elevada frequência. Da mesma forma, pessoas com certas mutações hereditárias nos genes Brca1 ou Brca2 têm um risco aumentado de desenvolvimento de cancros da mama e ovário.
Sumarizando as contribuições de King, Lindahl, Modrich e Sancar, a Ciência levou à descoberta da base molecular e genética de certos cancros, contribuindo para o rastreio de cancros familiares e para o desenvolvimento de terapias dirigidas contra alterações genéticas específicas.
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