God created two acts of folly. First,
He created the Universe in a Big Bang.
Second, He was negligent enough to
leave behind evidence for this act, in
the form of the microwave radiation.”
P. Erdős
29 de junho de 2022 marca a data em que se celebram 100 anos da publicação do artigo “Uber die Krumming des Raumes” (Acerca da Curvatura do Espaço), de Alexander Friedmann. Este trabalho apresenta as primeiras soluções da teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein em que o Universo surge em expansão ou contração. No espírito da citação do notável matemático Húngaro, Paul Erdős, estas soluções foram a primeira indicação de negligência na criação do Universo, surpreendendo todos, mesmo Einstein.
Einstein fora o primeiro a dar-se conta de que podia olhar para o Universo como um todo à luz da sua nova teoria e aplicar a nova lei da Gravitação ao próprio Universo. Em 1917, publicou o primeiro trabalho da nova cosmologia nos Annals der Phyzik. (Este trabalho, e os outros trabalhos pioneiros da teoria da Relatividade, estão traduzidos e compilados numa publicação da Fundação Calouste Gulbenkian). Porém, ainda que já fosse efervescente um debate sobre o limites da nossa galáxia e sobre a natureza das “nebulosas” que se observavam em detalhe através dos melhores telescópios dessa altura, o Universo conhecido à época confundia-se com a nossa galáxia, a Via Láctea. Einstein procurou um modelo para o Universo
que se ajustasse ao que era conhecido. Presumiu que o Universo fosse estático para dar conta da ideia de uma Via Láctea como uma distribuição de estrelas globalmente estacionária. Para poder obter um modelo com estas propriedades viu-se compelido a introduzir um termo adicional nas equações e que envolvia uma
constante que se tornou daí em diante conhecida como a constante cosmológica. A presença dessa constante nas equações produz um efeito repulsivo, que se opõe à gravitação, que é uma interação atrativa. Sem aquela constante, a solução das equações de Einstein determinariam o colapso da matéria. Com a constante cosmológica, Einstein assegurava o céu estático que observamos.
No mesmo ano de 1917, o astrónomo neerlandês Willem de Sitter pegou na recentemente proposta constante cosmológica de Einstein e, sem qualquer matéria no Universo, mostrou que existe de facto uma solução estática. Porém, mostrou também que nessa solução, hoje em dia conhecida por solução de de Sitter, a luz das nebulosas sofre desvios espectrais tal como Vesto Slipher tinha vindo a reportar desde 1912. De facto, no Universo de de Sitter, a luz proveniente de pontos afastados da posição do observador é recebida com as frequências desviadas para o vermelho, ou seja, para comprimentos de onda maiores. E quanto
mais afastada a fonte de luz estiver, maior esse efeito.
É neste contexto que surgiu o trabalho do matemático e meteorologista Alexander Friedmann, originário de São Petersburgo, que era então um jovem investigador no Observatório Geofísico dessa cidade.
Friedmann, nascido em 1888, teve uma vida demasiado curta, mas intensa. Aos 17 anos, antes mesmo de concluir o ensino secundário, publicou o seu primeiro artigo sobre Números de Bernoulli nos Mathematische Annalen, em colaboração com o colega e amigo Yakov Tamarkin, que depois se dedicou com sucesso à
matemática. Em 1905, Friedmann e Tamarkin lideraram várias contestações à política repressiva que existia contra as escolas Russas. Já como estudante universitário a partir de 1906, contactou com professores como Steklov, Markov, Ehrenfest e fez parte de um círculo de amigos que partilhavam o interesse pela Matemática e pela Física, amigos que se vieram a destacar nestas áreas.
Depois de um período em que esteve na frente austríaca, na Primeira Grande Guerra, na aviação e balística, Friedmann ficou fascinado pela teoria de Einstein e iniciou o seu estudo em 1920, quando se juntou ao Observatório Geofísico de São Petersburgo. Em menos de dois anos, tornou-se extremamente competente na
teoria e publicou o seu artigo em 1922. Nesse trabalho, que aqui celebramos, Friedmann começou, tal como Einstein, por considerar o Universo como tendo curvatura positiva. Esta escolha decorre de matematicamente podermos identificar três possibilidades para a geometria global do Universo: plana, de curvatura positiva, ou de curvatura negativa. Imaginando o Universo como uma superfície bidimensional, um universo plano corresponde à superfície do tampo de uma mesa; um universo de curvatura positiva corresponde à superfície de uma bola; e um universo diz-se que tem curvatura negativa se é como a
superfície de uma sela de cavalo. Usando as equações de Einstein da Relatividade Geral, os cálculos de Friedmann levaram-no à constatação da possibilidade de existir um “Mundo estacionário” ou um “Mundo não-estacionário”. Mundo é a palavra que ele usou para denominar um universo hipotético e o diferenciar do
Universo real.
Dedicando-se primeiro ao caso estacionário, Friedmann viu que este ainda se pode classificar de duas formas. O Mundo cilíndrico, que corresponde ao universo de Einstein, em que a constante cosmológica é positiva. Neste caso, tanto a constante como a densidade de energia da matéria determinam o tamanho do
Universo (mais precisamente, relacionam-se com o inverso do quadrado do factor de escala, R, a medida do tamanho do universo). Na classificação alternativa, temos o Mundo esférico de de Sitter, ou seja, o universo com apenas a constante cosmológica ainda positiva e, portanto, sem matéria. Até aqui, Friedmann
recuperou apenas o que até então tinha sido já avançado por Einstein e por de Sitter.
No caso do Mundo não estacionário, Friedmann derivou uma relação entre a coordenada tempo e o factor de escala. Notou imediatamente que há combinações de parâmetros (o valor da constante cosmológica e o valor da massa total do espaço) para as quais a expressão deixa de ter significado físico.
Friedmann percebeu que, se a constante cosmológica ficar acima de um dado valor limite, calculado por ele, esta situação não-física nunca se verifica. Nesse caso, ele mostrou que o universo se expande indefinidamente. Definiu ainda um “tempo desde a criação do Mundo”, que corresponde ao tempo necessário desde que o factor de escala, R, é zero até ter o seu valor actual. Esta foi a primeira vez que num artigo científico se usou a expressão “criação do Mundo” (João Barbosa, 2021).
Se a constante cosmológica tiver valores positivos, mas menores que o tal valor crítico calculado por Friedmann, então existem dois valores para o factor de escala (recorde-se, a medida do tamanho do universo) entre os quais as equações não têm significado físico. Isto significa portanto que o universo está numa de duas situações. Numa, o universo é quase estático e afasta-se dessa situação. Na outra, o universo teve um começo, que mais tarde se denominou por Big-Bang, expande-se e depois voltará para trás, como quem diz, voltará a colapsar para o factor de escala nulo R = 0. Chamamos hoje a este estado de Big-Crunch. O
curioso é que Friedmann disse que R é uma função periódica com “período do mundo”, função que ele calculou e de que até deu uma aproximação analítica quando a constante cosmológica tem um valor pequeno.
Quando a constante cosmológica é negativa, também existe uma evolução cíclica com oscilações no factor de escala.
O remate final do artigo é muito interessante na medida em que Friedmann humildemente declarou os limites dos instrumentos de observação da época, para que se consiga afirmar em qual destas situações se encontra de facto o nosso Universo:”O nosso conhecimento é completamente insuficiente para procedermos a cálculos numéricos e decidir em que Mundo está o nosso Universo”.
Percebe-se aqui a diferença de conceito entre “Mundo” e “Universo”. Diz ainda que “Fica a nota de que a constante cosmológica λ se mantém indeterminada nasnossas fórmulas, uma vez que é uma constante adicional no problema; que possivelmente considerações eletrodinâmicas possam levar à sua avaliação. Se
colocarmos λ = 0 e ???? = 5 ×10 massas solares, então o período do Mundo fica 21 da ordem de 10 mil milhões de anos. Mas estes números só podem mesmo servir como ilustração das nossas contas.”
Podemos especular que o facto de Einstein ter recorrido à introdução da constante cosmológica foi consequência de se ter dado conta de que o modelo de Universo conhecido produziria o seu colapso gravitacional, vindo a concentrar a matéria na sua região central. Ou seja, que as equações eram indicativas de um Universo em evolução catastrófica.
No entanto, Einstein tardou a aceitar que o Universo era dinâmico. De facto, a sua primeira reação aos trabalhos de Friedmann foi de ceticismo, para não dizer mesmo de recusa. Einstein alertou a revista onde Friedmann publicou o artigo com a nota de que os resultados respeitantes a um Mundo não estacionário lhe pareciam suspeitos e que “a solução dada não satisfaz as equações de campo”. Só se convenceu da robustez dos resultados matemáticos quando um colega de Friedmann, de São Petersburgo, Yuri Ktrutkov, o visitou em Leiden e o persuadiu que não havia nenhum erro nos cálculos de Friedmann. Em Maio de 1923, voltou
então a escrever à revista apontando que “os resultados do Sr. Friedmann estão corretos e trazem à luz novos aspectos”.
No entanto, isso não foi suficiente para que os resultados de Friedmann se disseminassem na comunidade científica da época e tivessem de imediato o impacto merecido. Só quando Georges Lemaître e Edwin Hubble relacionaram as observações das velocidades das galáxias vizinhas, que entretanto Hubble tinha
mostrado serem entidades exteriores à Via Láctea, é que entre os astrónomos e físicos se começou a impor a percepção de que o Universo estaria em expansão. E mesmo assim, só nos anos de 1960, com a descoberta da radiação cósmica de fundo, caíram por terra modelos como o do “estado estacionário”, de Fred Hoyle.
No fim dos anos de 1990, com a observação do brilho das explosões de supernova distantes, tornou-se claro que, não só o Universo se está a expandir, como o faz de forma cada vez mais rápida. Novamente foi invocada a constante cosmológica para explicar esta evolução acelerada, que se terá iniciado na altura da história do
Universo em que o Sistema Solar se estava a formar, há cerca de 4,5 mil milhões de anos. Este paradigma da evolução do Universo foi corroborado com as observações precisas da radiação cósmica de fundo realizadas com os satélites WMAP e Planck, bem como pelo mapeamento da distribuição das galáxias no
Universo, confirmando a necessidade de uma componente de “energia escura”, ou em alternativa, de modificar a Relatividade Geral nas grandes distâncias.
Entender a natureza da energia escura, que contabiliza setenta por cento do Universo, é um dos motores científicos para a missão espacial Euclid, da Agência Espacial Europeia (ESA) e para a construção do grande radiotelescópio SKA. Em ambas as infraestruturas está envolvida a comunidade científica portuguesa e o
Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA), em particular. Portugal é mesmo um dos países fundadores da organização intergovernamental do observatório SKA.
Tal como o Universo atual, Friedmann teve uma vida que se pode considerar acelerada. Em 1925, fez uma ascensão em balão a uma altitude recorde de 4700 metros com o fim de fazer observações meteorológicas e médicas. Porém, literalmente no apogeu das suas atividades, contraiu uma febre (não é completamente claro como e que tipo de febre… Terá sido tifóide?). Morreu dois meses depois, aos 37 anos, a 16 de setembro desse ano.
Com trabalhos importantes em áreas diversas como na matemática, balística, meteorologia e hidrodinâmica, podemos apenas especular qual teria sido ainda a extensão do legado do “homem que fez o universo expandir” se tivesse tido uma vida mais longa.
Referências
A. Friedmann, General Relativity and Gravitation, Vol. 31, No 12, 1999.
Originalmente publicado em Zeitschrift fur Physik 10, 377-386 (1922).
E. A. Tropp, V. Ya Frenkel and A. D. Chernin, Alexander A. Friedmann : the man who made the universe expand (Cambridge, 1993).
João Barbosa, Creation: a Multifaceted and Thematic Concept in the Construction of Modern Cosmology – from Friedmann’s Creation of the Universe to the Steady-State’s Continuous Creation, Philosophy and Cosmology, Volume 27, 22-33 (2021).
Pedro Gil Ferreira, Uma Teoria Perfeita, Lisboa, Editorial Presença, 2014.