A 23 de fevereiro de 1981, o coronel da Guardia Civil Antonio Tejero Molina, à frente de um destacamento de tropas, entra no hemiciclo onde decorre uma sessão das Cortes espanholas, com a presença do primeiro-ministro, Adolfo Suarez. Aos gritos, ordena que ninguém se mexa. O vice-presidente do Governo, general Gutiérrez Mellado, puxa dos seus galões de oficial de patente superior e ordena a Tejero que mande depor as armas. O oficial insurreto reafirma a ordem e faz um disparo para o ar, sendo imitado pelos seus homens, que disparam rajadas de espingarda automática. Todos os deputados e membros do governo se atiram para o chão. Todos? Não: três irredutíveis resistentes mantêm-se firmes e altivos, nos seus lugares. São eles o próprio Gutiérrez Mellado, o primeiro-ministro, Adolfo Suarez, e o secretário-geral do Partido Comunista Espanhol, Santiago Carrillo.
Na magistral reconstituição dos acontecimetos, transcrita em livro – o melhor título em castelhano editado em 2009 , o escritor Javier Cercas parte desse preciso momento para dar o nome à sua obra, “Anatomia de um Instante”, identificando esse episódio como o minuto fundador da democracia espanhola, e os seus protagonistas como os heróis desse desiderato. Inicialmente, Cercas pretendia escrever um romance, baseado no famoso 23F (23 de fevereiro), mas, como explica na introdução, à medida que ia pesquisando, a realidade revelava-se muito mais rica de pormenores do que qualquer ficção que um autor pudesse criar à volta dessa data histórica. Em vez de um romance, Cercas publica uma mega-investigação jornalística, com flashbacks constantes para os tempos da Guerra Civil (1936-1939), mas escrita com o talento literário de um romancista consagrado. E uma das personagens centrais é o rei Juan Carlos I que, ainda durante os momentos de maior tensão, e com o parlamento ocupado pelos golpistas, faz uma proclamação televisionada ao País, em que reafirma o empenho da Coroa na construção da democracia, desautoriza os rebeldes e ordena-lhes que se rendam.
Muitos anos antes, Juan Carlos I fora chamado a Espanha pelo Caudilho, para que fosse educado no seu país, formado por mestres castelhanos e imbuído dos valores espanhóis. Franco, que, durante a sua vida, nunca teve a intenção de restaurar a monarquia, nem permitiu o regresso de Afonso XIII, avô de Juan Carlos, nem do seu filho Juan, conde Barcelona (exilado em Portugal, no Estoril), pretendia, no entanto, preparar a sucessão, em segurança, e garantindo a unidade nacional (acima dos nacionalismos larvares), para quando ele próprio “faltasse”. Numa das suas proezas maiores, o ditador conseguiu morrer tranquilamente, na sua cama, em 1975. E a emergência de um monarca jovem, bem preparado, de cara lavada, que pudesse congregar à volta da simbologia da monarquia as várias nações espanholas, era agora a solução tão laboriosamente arquitetada pelo vencedor da guerra civil: Franco deixava Espanha em boas mãos. Mas tudo isto, que poderia funcionar na teoria, estava longe de serem favas contadas, na prática. Como reagiriam os espanhóis ao desaparecimento do Caudilho? Como se comportariam os vários nacionalismos? Que sequelas da guerra dos anos 30 iriam ressurgir? Era um salto no escuro: o pensamento político do rei era totalmente desconhecido. Ou, por outra, tendo em conta a forma como Franco o vigiara de perto – escolhera, pessoalmente, os seus instrutores, recebia-o regularmente para saber da evolução dos seus estudos e dava-lhe longos conselhos políticos e paternalistas… -, o mais certo é que essa influência se refletisse num reforço do regime autoritário. Mais, a julgar pela escolha do primeiro-ministro, um antigo dirigente da Falange (embora ainda muito jovem) seria de esperar o pior.
No 23F, em 1981, Juan Carlos revelou as suas intenções: abrir, reconciliar, democratizar. Mas, no jogo de sombras dos bastidores do golpe, talvez a sua atuação tenha sido mais ambígua
Acontece que, traindo os seus antigos correligionários falangistas, Adolfo Suarez, um ambicioso quadro político, egocêntrico mas corajoso, faria uma transição política segura, firme e audaciosa. A legalização do PCE e o regresso a Espanha do seu líder histórico fora a gota de água a fazer transbordar o copo da paciência das forças ultramontanas e franquistas, de que Tejero Molina era um dos rostos mais excitados. Mas a intervenção do rei, no 23F, resultava numa meia surpresa (agradável, bem entendido). Era a revelação inequívoca das verdadeiras intenções do novo poder em Madrid: abrir, reconciliar, democratizar. Juan Carlos tornava-se a figura decisiva da democracia. O pilar do novo regime democrático. Um monarca constitucional de ampla popularidade, lá dentro e cá fora. O símbolo da unidade nacional. Um exemplo para as realezas europeias. A moderação, a contenção, o recato e a classe seriam, durante anos, imagens de marca, suas e da Família Real, em especial, da rainha Sofia – durante muitos anos nunca ensombradas pela possível “vida dupla” do monarca, um segredo progressivamente menos bem guardado.
Mas a História pode vir a revelar outros bastidores, de que Javier Cercas abre a cortina, no seu livro marcante. Muito cética relativamente ao verdadeiro papel do rei, a investigação impecável do escritor abre hipóteses para as suas ambiguidades, diante daquele transe. Teria ele sabido antecipadamente do golpe? Estaria mancomunado com os golpistas, tendo roído a corda no último momento, quando percebeu que eles estavam condenados ao fracasso? Terá produzido a célebre declaração coagido por alguns conselheiros ou por militares moderados? É possível que, perante os recentes acontecimentos, que fizeram Juan Carlos cair em desgraça, as teses de Javier Cercas – que nunca tiveram eco – venham, agora, ao menos, a ser debatidas pelos historiadores.
Seja como for, o problema de Juan Carlos (cujos atos replicam, na verdade, os que a esmagadora maioria dos monarcas espanhóis, portugueses e europeus pré-constitucionais praticou, durante séculos…) é exclusivamente espanhol. No que diz respeito a Portugal, interessa-nos saber duas ou três coisas: o rei emérito de Espanha é um lusófilo. Passou a sua infância entre nós, fala corretamente o Português, aprecia a nossa cultura e gastronomia, ama Portugal e os portugueses e foi sempre um embaixador de luxo do nosso País no seu próprio Reino e no mundo hispânico. Portugal deve-lhe muito. É digno de respeito. O resto é entre ele e os seus ex-súbditos.