Gosto de ver o mar enraivecido
A desfazer-se contra a penedia
Gosto de vê-lo assim enfurecido
Bramindo e espumando em rebeldia …
Há poetas e prosadores que, promovidos por tertúlias, facilmente se veem publicados e divulgados, embora a qualidade das suas obras possa ser tantas vezes discutível. Outros há que, talentosos, escrevem para si próprios, arrumando tantas vezes textos poderosos dentro de gavetas onde ficam a apodrecer. O poeta desta crónica não foi publicado nem ficou na gaveta, oferecendo a sua obra, encadernada por ele, a amigos e conhecidos. Eu fui um dos felizardos.

Diniz Decq Mota, nascido em Ponta Delgada a 1 de agosto de 1924 e falecido a 13 de novembro de 2004, é um poeta açoriano, que, não tendo sido patrocinado por nenhuma editora, imerecidamente não chegou a ver a sua obra publicada. Por isso, para que não caísse no total esquecimento, compilou ele próprio os seus poemas em quatro pequenos livros, de que fez cópias e encadernou à mão para oferecer a amigos. Foi assim que, anos depois, remexendo nos meus próprios papéis, fui dar com alguns dos seus poemas, cuidadosamente acomodados num pequeno volume, o III dos seus quatro Relicários. Fora-me oferecido pelo próprio. Reli cuidadosamente todos os poemas e ficou-me a certeza que todos ficámos a perder, quando, por falta de publicação, não chegámos a conhecer a obra deste nosso poeta.
Decq Mota frequentou o Liceu Nacional de Ponta Delgada, depois a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde cursou Filologia Românica, mas quis voltar aos Açores onde acabou por se empregar na Circunscrição Florestal de Ponta Delgada. Aqui casou e teve dois filhos, Ana Maria e Carlos Manuel.
Em abril de 1980, um cancro roubou-lhe a mulher, Zilda Maria, falecida com apenas 54 anos de idade. Diniz perdeu-a e caiu de imediato numa depressão profunda que carregou até ao fim dos seus dias.
Na hora em que morreste, nesse dia,
O mais triste de toda a minha vida,
Comecei, meu amor, minha agonia,
Minha alma foi desfeita, destruída…
Uma angústia sem fim em mim brotou,
Um manto de tristeza me envolveu
Quando Deus, sem piedade, te levou
E tudo em minha volta emudeceu.
Foste-te embora, amor, passei a ser
Vaga desfeita deste mar sem fundo,
Sol apagado pelo anoitecer …
E, envolto num silêncio tão profundo,
Como a dor que senti por te perder,
Arrasto minhas mágoas neste mundo.
Após reformar-se, perito que era em organização pública, o então Secretário Regional da Agricultura e Pescas do Governo Regional dos Açores, Adolfo Lima, convidou-o a reformular a importante secretaria açoriana, sediada na cidade da Horta, na Ilha do Faial. A terra de residência de um seu irmão, o médico e filantropo Luís Decq Mota, com quem se dava muito bem, acolheu-o de forma que por lá passou longas estadias ocupando assim o tempo a tentar amenizar o desgosto da perda da companheira.
Gosto de ver o mar enraivecido
A desfazer-se contra a penedia
Gosto de vê-lo assim enfurecido
Bramindo e espumando em rebeldia …
As suas águas cinza-esverdeadas
Em vagalhões de espuma fervilhando,
Como um brigue de velas desfraldadas
O rijo temporal desafiando.
Faz-me lembrar assim, por um momento,
A minha alma lutando contra o vento
Do vendaval que sopra no meu peito
Pois ela, como o mar embravecido,
Vai enfrentando o tempo desabrido
Do meu viver – um temporal desfeito.
Diniz Decq Mota foi filho de um oficial da Marinha Mercante, Alfredo Sousa Mota, trabalhador na empresa Carregadores Açorianos, e de Marie Decq Mota, de nacionalidade belga, da região flamenga de Bruges, que era popularmente tratada nos Açores por Madame Decq, conhecida pela sua candura e por ter sido explicadora de francês de várias gerações de açorianos.
O teu menino, Mãe, envelheceu
E as rugas no seu rosto se instalaram …
O seu cabelo negro embranqueceu,
Seus olhos muitas lágrimas choraram.
E com o coração em desatino
Sofre na carne uma saudade ingente …
Como tem padecido o teu menino
Que se vai apagando lentamente.
Perdeu a companheira, essa mulher
A quem tanto ele quis e tanto amou,
Que era toda a razão do seu viver …
A soledade nele se ficou
E nele restará até morrer …
O teu menino nunca mais cantou.
Diniz Decq Mota tinha mais de cem familiares na Bélgica e em França. O sangue acabou por o chamar. Partiu para Bruges e foi-se deixando ficar por lá durante dez anos, vindo à ilha apenas nos verões, em agosto, para passar o seu aniversário com os filhos e netos, e em maio para participar nas grandes festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, de quem foi constantemente fiel devoto.
Que fome de carinho
Ó meu Senhor Jesus
Um pouco de ternura
E a minha desventura
Seria mais amena …
Um pouco de ventura
e a minha negra cruz
Seria mais pequena.
Diniz Decq Mota deixou-nos em 2004, com 79 anos de idade. Liberto, o poeta açoriano da tristeza, como ele próprio se designava, merecidamente dorme enfim.
Lancei ao ar, no espaço
Todo o meu longo cansaço,
Todo o meu vivo tormento …
Os meus ais por lá deixei,
Minhas penas atirei
Para que as levasse o vento.