Chegámos à Escola de Mahera, a 120 quilómetros de Pemba, por volta das 9 e 30 e o coro Helpo voltou a ouvir-se. Também se repetiu o calor abrasador –35 graus com humidade de 70% – e a recepção solene com professores orgulhosos e cadeiras de plástico em semicírculo. Cumprimentámos toda a gente e fomos embora, não por falta de educação, mas porque tinha sido acordado falar com a família de alguns afilhados, na sua própria casa.
Atravessámos a estrada e deparámo-nos com um cenário semelhante, numa versão mais simples e ecológica. Quatro bancos de verga esperavam pelos traseiros dos doutores, numa clareira entre casas de pau a pique. Estas habitações são construídas com um xadrez de canas, revestidas a barro e com telhados de capim. Trocar estas coberturas por chapa de zinco é um sinal de estatuto e, claro, de maior resistência às chuvas.
O doutor Carlos Almeida, numa observação acutilante, própria de quem coleciona milhas nas estradas das províncias de Cabo Delgado e Nampula, contou que “as pessoas no mato vivem exatamente como há cem anos, com três exceções: todos os adultos têm telemóvel, toda a gente tem baldes de plástico e todos têm acesso a roupa ocidental.” É o chamado vestuário de calamidades, restos de coleção, oferecidos em alturas de calamidades naturais e de guerras desnaturadas.
Curiosamente, numa conversa de café, ouvimos uma teoria que defendia o balde de plástico enquanto símbolo da revolução moçambicana e não a metralhadora AK-47, que figura na bandeira do país a cruzar-se com uma enxada. Antes da leveza dos baldes de plástico subirem à cabeça das mamãs moçambicanas para transportar água potável ao longo de quilómetros, a solução anterior eram bilhas de barro que, mesmo vazias, pesavam demasiado.
Cumprimentámos a mamã Cristina Zacarias e a sua mamã, Varnaia Muaueheke, que nos apresentaram a descendência por ordem decrescente. O mais velho, com 18 anos e o mais novo, de colo. Falámos com Estefânia, Josefina, Dulce (uma vizinha) e Laura. Esta última foi das primeiras meninas a surpreender-nos com o sonho de uma profissão diferente: apresentadora de televisão. O seu sorriso de cara cheia, diferente da vergonha com que nos presenteiam habitualmente, os vestígios de purpurina à volta dos olhos e os dois anos que viveu em Maputo com um tio, ajudam a compor o seu olhar mais ambicioso.
Próxima paragem: banho de alunos na escola de Impire. Depois da Helpo ajudar a construir mais seis salas de aula, o Ministério da Educação aumentou a escolaridade da 7ª até à 10ª classe. Esta é a única escola Helpo com energia elétrica e tem uma biblioteca invejável, com mais de 2 mil livros, em português, inglês, francês e (apenas) dois em emakhuwa, a língua indígena mais falada em Moçambique.
De regresso à cidade ficámos a conhecer um projeto ambicioso e delicioso, a Ludoteca Helpo da Biblioteca Pública Provincial de Pemba, provavelmente um dos espaços didáticos gratuitos mais bem sucedidos do país. As crianças que aqui vêm, aprendem com calma e método, à velocidade do aluno mais lento. Teatro, poesia, educação visual, francês, inglês e cidadania são só algumas das matérias que o animador Manuel Cipriano explica, segundo uma pedagogia desenvolvida pelo próprio.
As crianças que falaram connosco no local vieram comprovar que está tudo certo. Dara foi a criança mais faladora e esclarecida até agora. Já quis ser empresária, mas agora ambiciona ser engenheira eletrónica. Na verdade já tem um part-time, apresenta dois programas infantis na Rádio Moçambique, o Correio Infantil e o Cantinho da Alegria. Nelson declamou-nos um poema. Omar está a caminho de ser doutor de hospital. Berta gosta de desenhar, mas vai seguir engenharia civil. Cidália imagina-se futura professora e quando lhe perguntamos qual foi o momento mais feliz da sua vida, responde sem hesitar “16 de Junho, o dia da festa da Ludoteca”.