Tenho um grande amigo aqui, um companheiro que fala muito bem inglês e anda comigo para todo o lado, a fazer de intérprete. O Geil tem vinte anos, transferiu-se para Bruxelas com a família, quando tentaram assassinar o seu pai, um oficial general no exército iraquiano. Contou-me que, dias antes de partir, prometeu a uma menina, a troco de um beijo, que se casaria com ela quando acabasse os estudos. Não pôde cumprir a palavra, mas consegue rir-se disso. “Pode ser que depois disto tudo, quando eu tiver papéis, uma casa e uma vida, alguma miúda se queira casar comigo”. Eu quero muito dizer a verdade ao Geil, mas deixo a verdade para depois da espera e digo-lhe que vai conseguir ter isso tudo. Pode ser que até lá a verdade mude.
Porque agora, as hipóteses de um futuro para Geil são muito poucas. Se viesse da Síria, era mais fácil.
Pendurados no balcão, de olhos brilhantes, curiosos, e uns primeiros sinais de barba tão próprios da idade que têm, um grupo de cinco rapazes tenta interagir comigo, com o obstáculo da falta de prática em inglês – e em meninas. Acabo por lhes facilitar a vida metendo conversa, nomes, idades, de onde vêm, e eles ali ficam, com risinhos nervosos, a contar-me as suas histórias.
Tenho de voltar ao trabalho e eles vão dar uma volta. Passado um bocado, voltam menos sorridentes: não têm onde dormir. Faço de mãe e ralho com eles, mas com o sorriso de sempre. “Então só agora é que me dizem? Vão imediatamente à Cruz Vermelha!”. Mandei-os comer qualquer coisa e pedi ao meu colega Mathieu para os acompanhar. Os menores de idade nunca ficam na rua, para eles há sempre solução. O problema são os outros.
Todas as noites, perto da hora de fecho do centro, um grande grupo de pessoas espera ansiosamente a chegada da Lou ou da Sara, dois anjinhos de cabelo loiro e olhos azuis. São elas quem trata de arranjar um sítio para quem não teve direito ao acolhimento nos edifícios estatais, nem na Cruz Vermelha. Ao longo do dia, vou sendo abordada por pessoas com a mesma aflição: não ter onde dormir. A resposta é sempre a mesma: não há problema, só têm de ficar por perto, comer e descansar, eu registo os nomes e, por volta das oito, alguém há de vir para resolver a questão.
A Lou e a Sara são responsáveis pelos contactos com as famílias e instituições que acolhem temporariamente refugiados em situações de desespero. O centro de imigração abre apenas nos dias de semana, o que significa que quem chegar a Bruxelas fora desse horário fica dependente de um abrigo provisório, quase sempre garantido pela Cruz Vermelha, pela universidade ou por uma família belga. É difícil querer ajudar toda a gente e ter de seguir regras. As famílias com crianças têm sempre prioridade. Por vezes, há mesmo quem acabe a dormir na rua, por impossibilidade de distribuir toda a gente. É disso que mais me custa esquecer, todas as noites, quando me obrigo a um processo de abstração, no caminho de bicicleta até casa.
À chegada à capital belga, todos os refugiados devem dirigir-se ao centro de imigração, nos dias úteis e no horário de expediente, para a recolha de impressões digitais. Neste momento é marcada uma primeira entrevista, é-lhes designado um local para dormir até lá e recebem roupa e produtos de higiene. Mas se, por exemplo, uma família chegar numa sexta-feira à tarde, terão de se socorrer do nosso serviço de alojamentos para passar o fim de semana numa casa e, segunda-feira, se poderem apresentar no tal escritório.
Após a primeira entrevista, os refugiados têm de esperar pela convocatória para uma segunda. Dependendo do caso, poderá existir uma terceira entrevista e até uma quarta. Todo este processo dura à volta de seis meses. Seis meses de ansiedade. As entrevistas são marcadas e, em cima da hora, adiadas para daí por um ou dois meses. O tempo de espera pode ser superior a quatro ou cinco meses e todas estas pessoas ali estão, todos os dias, no meu balcão, a ver passar o tempo.
Ainda assim, devemos pensar que estão melhor aqui do que nos países de onde vêm e que esperar em paz já é muito bom. Uma mãe de família iraquiana, que partiu sozinha com os filhos para a paz na Europa, explicou-me que “pior do que morrer, é esperar pela morte” na terra da guerra.
No fim das entrevistas, os refugiados deverão aguardar, por tempo incerto, uma resposta positiva ou negativa. Durante toda a burocracia, vivem em edifícios disponibilizados pelo Estado, espalhados pela Bélgica, deslocando-se a Bruxelas para cada fase do processo de asilo. No Hall Maximilian, temos tradutores, advogados e assistentes sociais que trabalham como voluntários para os aconselhar e acompanhar, tentando tornar tudo mais fácil e rápido.
Se a resposta for negativa, estes refugiados terão de abandonar o espaço Schengen, ou esperar mais uns meses para pedir um recurso e recomeçar o processo.
É nesse momento que começa o seu drama de Sans Papiers, homens e mulheres de todo o mundo, a quem não foi concedida uma nova vida, uma oportunidade de recomeçar, e que obviamente não podem voltar para as suas terras. Dormem nas ruas, errantes, sem solução de futuro, nem solução de presente. Muitos deles trabalham aqui no centro como voluntários, em troca de comida e também de uma “família”, que somos nós. Há algumas associações na cidade que os acolhem, mas a incerteza é avassaladora para quem vive nesta situação.
O que mais me custa é saber que, por agora, é quase impossível obter o direito de asilo para todos aqueles que não vêm da Síria. Não é regra escrita, mas é a realidade. Lá, a guerra é efetiva, para não dizer “oficial”, e talvez, por isso, a Europa sinta maior responsabilidade. No Hall Maximilian, tenho amigos sírios, mas também iraquianos, palestinianos, afegãos, paquistaneses e ugandeses. Todos estes países têm instabilidade e violência, todas estas pessoas deixaram os seus lares por causa do mesmo desespero, da mesma falta de alternativa, todas por uma questão de sobrevivência. Todas estão a passar pelo processo de entrevistas, algumas já pela segunda vez. A minha tarefa é tentar transmitir-lhes esperança. Sorrio sempre. Acompanho-os nesta espera. E adio a verdade, à espera que a verdade mude.