O Hall Maximillian fica a poucos metros do jardim que há uma semana era a casa de centenas de migrantes. Quando cheguei a Bruxelas, o campo havia já sido encerrado, o governo disponibilizara casas de acolhimento para os refugiados e a sociedade civil unia esforços para lhes dar condições básicas de sobrevivência.
O sítio onde agora trabalho, o tal Hall Maximilian, é um armazém antigo, precariamente transformado num local em que os refugiados passam o dia, recebem roupas e comida, apoio educativo e legal, cuidados de saúde e atividades de lazer. No dia em que fecharam o campo, contou-me a minha colega Chantal, voluntários e refugiados uniram esforços, deitaram paredes abaixo, construíram degraus, bancos e bancadas com paletes de madeira e criaram divisões com paredes de pano e contraplacado. Entrando pela velha garagem, encontramos uma cozinha improvisada, uma casinha para as roupas, uma sala de estar com colchões e almofadas, escolas de línguas, um centro de saúde gerido pelos Médecins du Monde, um gabinete de psicologia e assuntos legais, um espaço para as crianças e uma grande cantina.
No centro trabalham cerca de sessenta voluntários. Uns distribuem comida e roupas, outros são médicos, professores, auxiliares. Eu trabalho na secretaria, forneço as informações necessárias a refugiados e voluntários, distribuo as doações pelos vários departamentos e participo, de um modo geral, na gestão do espaço. Pelas mãos, todos os dias me passam folhas de papel, documentos e cartas das secretarias e centros de imigração, apertos calorosos e bebés pequeninos, que se instalam no meu colo e brincam com os meus cabelos.
À frente do balcão em que me debruço, há uma pequena salinha de paredes cobertas por desenhos de crianças refugiadas. Uns têm sóis e arco-íris, corações e muitas cores, outros são de cores escuras, riscos carregados e imagens difusas de sofrimento. Um grande cartaz dá nome à sala – “La Voix des Refugis” – a voz dos refugiados expressa num alfabeto que não compreendo, em recortes de jornais que noticiam manifestações de boas-vindas, a ação da sociedade civil, a impotência dos governos e a criação de outros centros e campos na Europa, do género deste em que trabalho. Raramente se vêem mulheres. Há algumas crianças escondidas nos braços fortes dos pais e são homens quem ocupa os espaços, quem faz fila para a comida, para as roupas, são eles que se reúnem a conversar para passar o tempo e se aproximam do balcão, curiosos, para me observar, uma menina nova, ainda por cima loirinha.
Abdullah veio de Gaza, tem 19 anos e gostava muito de jogar futebol, mas teve de abandonar o seu bairro reduzido a destroços e partir, por causa da guerra. Está há um mês na Bélgica. Pergunta-me de onde venho e entusiasma-se, exclamando, com um grande sorriso: “Portugal! Cristiano Ronaldo!”. Apresenta-me o seu amigo iraquiano, cujo nome não consigo entender. No Iraque também há guerra, explica-me Abdullah, por isso é que ele está aqui. Depois dessa nossa primeira conversa, passou a seguir-me ofegante para todo o lado. Este é um mundo novo, que desconhece. Não sabe como reagir e acho que até está a fazê-lo muito bem, tendo em conta o rodopio em que deverá andar a sua cabeça. Quando não sabe o que há de dizer, pergunta-me se tenho frio. Diz-me que eu devia ter cuidado e não andar de bicicleta à chuva, (entretanto comprei uma, em segunda mão, para as deslocações na cidade), que posso ficar doente e depois já não vou ao centro. Pediu-me o número, disse-lhe que não tinha, ofereceu-me um cigarro, disse-lhe que não queria. Obrigada, tenho de ir trabalhar. E lá vai ele dar mais uma voltinha.
Aqui, a maioria dos refugiados vem do Iraque, da Palestina e, só em terceiro lugar, da Síria. Por dia, entram e saem à volta de quinhentas pessoas que fugiram da guerra nos seus países, uma pequena percentagem do mar de gente que atravessou o Mediterrâneo para agora permanecer numa situação indefinida, à espera de papéis, estatutos e oportunidades.
É gente à espera de uma vida, nesta terra onde encontrou a paz exterior. Quanto à interior, nem acredito na paz de espírito que demonstram e na tranquilidade com que vêem os dias a passar.
Uma grande parte dos voluntários com quem trabalho são imigrantes de países árabes. Paul, marroquino criado em Londres, também já dormiu na rua e demonstra um claro orgulho no seu sotaque britânico. O problema, conta-me, é que os que mais sofrem com a guerra nem sequer têm condições para fugir e têm de lá ficar a ver a sua vida miserável a agravar-se a cada dia, sem alternativa.