H á quem limpe casas; eu limpo o lixo da internet. Antes de ser contratada, não fazia a mínima ideia do que ia fazer, apenas que tinha de saber espanhol. Tudo era confidencial e secreto. Foi só no escritório que me puseram perante conteúdos a que possivelmente ia estar exposta e explicaram-me como é feita a classificação: pode ser visto por crianças e bebés; por pessoas com mais de 18 anos; ou é tão gráfico e intenso que não deve estar na internet.
Não posso ser específica, porque assinei um contrato de confidencialidade, mas posso dizer que me mostraram logo o pior do pior. Nem todas as plataformas fazem a moderação do conteúdo de igual maneira. Aliás, há plataformas com zero moderação.
É complicado tentarem imaginar o que eu vejo. A pessoa que sou hoje não é a mesma que entrou naquela empresa. O que vejo todos os dias faz-me mudar de uma forma astronómica, e nem sempre me apercebo. Achava que era pouco sensível a determinados temas, pensava que não ia afetar-me, mas quando somos expostos a esse tipo de conteúdo, é diferente. Sobretudo se for durante muitas horas seguidas.
Quando chego ao final do dia, é difícil olhar para as pessoas como dantes. Antes de começar a limpar o lixo da internet, não sabia que o ser humano era capaz de coisas tão cruéis. E a atenção que passei a ter em espaços públicos… não sei se é medo, mas fico muito a observar, não estou 100% confortável.
Sou licenciada em Biomecânica, fiz o mestrado em Fisioterapia Desportiva, em Madrid, regressei a Lisboa em janeiro e, agora, entrei no curso de Osteopatia. Quando soube da hipótese de moderação de conteúdos, pensei: “É um primeiro trabalho e depois vou para a minha área, onde as oportunidades não são muitas.”
Ao princípio, estava tudo bem. Parecia um filme. Só depois é que me senti obrigada a criar uma barreira mental entre o que vejo e a minha vida pessoal. A família e os amigos acham-me super resistente por conseguir ver determinados conteúdos; dizem que, se fossem eles, só iam chorar. De facto, sou resistente, mas há coisas que vão marcar-me para sempre. Coisas desumanas a que ninguém fica indiferente.
Na minha empresa, há uma certa preocupação relativamente ao número de horas a que estamos expostos a esse tipo de conteúdo. E há uma grande atenção à nossa saúde mental. Existe apoio psicológico 24 horas por dia, sete dias por semana, para nós e para as pessoas à nossa volta, porque temos de ter um ambiente estável fora do trabalho, para não sermos afetados negativamente. De xis em xis tempo, temos uma sessão para dizermos como nos sentimos.
De início, pensava: “São só umas horas por dia e depois vou para a faculdade e vou fazer surf e…” Mas, quando se torna rotina, somos obrigados a olhar para nós e a pensar se está ou não a afetar. E estava. Não vou voltar a ser a pessoa que era. Perdi a inocência e foi à bruta.
Em princípio, tenho de ver os conteúdos na íntegra – a não ser que surja logo uma coisa muito grave, do mais violento, do mais gráfico que há. Gostava de dar exemplos, mas não posso. Pensem só que tudo aquilo que aparece nos telejornais, nos noticiários, e em que a imagem aparece enevoada ou pixelizada… é esse o nível gráfico que vejo. Vejo tudo cru.
Tenho de procurar o conteúdo mais grave e assinalá-lo para justificar a minha classificação. Os conteúdos são vistos por várias pessoas e a classificação final é dada com base numa média.
“TENTAMOS SER NEUTRAIS”
A moderação de conteúdos também deve estar de acordo com a maior parte das culturas no mundo, o que não é fácil. Para os budistas, o vídeo do Dalai Lama a beijar uma criança é normal, porque ele é Deus na Terra. No entanto, para os países europeus e para as nossas políticas de moderação de conteúdo, até que ponto não é abuso de menores?
Existem regras, mas, assim que um vídeo surge, temos de classificá-lo num muito curto espaço de tempo, porque são biliões de uploads ao minuto. A decisão final é superior a nós – recebemos indicações de como devemos atuar, mesmo quando vai contra os nossos princípios.
Foi-nos dito que o Hamas é um grupo terrorista, mas então aquilo que Israel está a cometer não é um genocídio? Há quem pense que sim. Tentamos ser o mais neutrais possível, sem tomar um lado.
Acredito que faço o que faço por um mundo melhor. Embora saiba que aquilo que vejo e bloqueio pode ir para o ar noutro lado. Se uma pessoa quiser ter acesso, tem, mas ao menos não vê sem querer.
É um trabalho importante e alguém tem de o fazer. Acredito que o que faço tem um significado maior, embora não dê o corpo ao manifesto, como uma médica sem fronteiras. É para as pessoas não entrarem numa espiral de depressão, porque o ser humano é horrível.
Ninguém devia ser exposto a determinados conteúdos. Não fiquei dessensibilizada, mas, se calhar, não vou ter a mesma reação de antes; se calhar, não vou dar tanta importância. Já vi tanto que relativizo.
Hoje, já tenho amigos a dizer que não sabem se querem ter filhos neste mundo, não quero imaginar como iria mudar a perspetiva de futuro que têm as pessoas da minha geração. Se vissem a maior parte das coisas que nós vemos… não sei se a sociedade ia aguentar emocionalmente.
Depois de se conhecer a parte mais vil do ser humano, corre-se o risco de banalizar. Se tudo fosse exposto e considerado normal, ia mesmo passar a ser – e aquelas coisas não podem ser banais nem normais.
Quando vou a um centro comercial, gosto de encontrar uma casa de banho limpa. Na internet, gosto de ver flores e animais bonitos, é agradável, é bom. O que acontece é que vou à casa de banho de um centro comercial e sei que houve alguém a limpar, mas, quando uma pessoa vai à internet, não faz ideia de que houve alguém a fazer o mesmo trabalho.
Depoimento recolhido por Rosa Ruela