Por que razão um homem prestes a fazer 30 anos foi ter com uma miúda de 16? Visto de fora, essa devia ter sido logo a primeira red flag. Mas, para mim, o primeiro sinal de que havia algo de muito errado na nossa relação surgiu ao fim de uns dois meses, quando o Miguel me chamou à atenção porque um amigo dele me tocava no braço ou na perna quando conversávamos. “Tu és minha namorada, tens de te dar ao respeito.”
Pouco tempo depois, troquei um “Bom dia” com esse amigo, no sítio onde o Miguel trabalhava. Ele viu a nossa interação através das câmaras de segurança e ligou-me aos berros, a dizer que não queria relacionar-se com uma puta. Chamava-me isso frequentemente, uma vez até ao pé da minha mãe – disse que os meus calções eram de puta, não sei se reparou que ela estava com uns iguais.
Eu era muito ingénua. Tinha vivido pouquíssimo. Só tinha tido um namorado antes e por pouco tempo. Era protegida pelos meus pais, talvez por ser filha única. Gostava muito de estar em casa, a ler ou a ver séries. Com as minhas amigas, ia ao cinema ou à praia ou ficávamos em casa umas das outras. Nunca tinha ido a uma discoteca.
Quando conheci o Miguel, era só “Bom dia, boa tarde”, até que, numa festa de Carnaval, ele aproximou-se, ofereceu-me uma bebida e ficámos à conversa. A certa altura, perguntei-lhe: “Que idade tens?”, e ele: “Que idade me dás?” Dei-lhe 25, depois 27 e quando me disse “29” fiquei… uaaaooo. Tive logo o instinto de que pisava terreno perigoso. Como os meus pais estavam à minha espera, disse-lhe “Tchau” e foi aí que ele me puxou e deu-me um beijo na boca.
Andámos um mês ou dois na clandestinidade. O Miguel ia buscar-me à escola, parava o carro ao fundo da rua, mas toda a gente via. Era um open secret na minha Secundária e eu estava fascinada. É fácil uma miúda fascinar-se com a atenção de um homem. Na altura, tinha uma relação distante com o meu pai e estar com ele fazia-me sentir-me especial.
As coisas avançaram. Assustava-me avançar, mas, por pressão do Miguel, acabámos por ter relações e foi traumático. Ele tinha andado imenso tempo a mostrar-me pornografia para me aliciar e dizia-me que eu ia gostar bastante, mas, nessa primeira vez, eu estava a chorar. Mesmo não dizendo que não queria, um adulto não conseguiu ler que as minhas lágrimas eram um sinal para parar.
A partir dali, sempre que era possível, eu já sabia que ia lá a casa para isso. Tínhamos uma relação solitária, muito a dois. Eu nunca estava com amigas porque o Miguel dizia que elas iam tentar afastar-nos. Hoje sei que é um manipulador e um predador. Antes de mim, andou sempre com miúdas muito mais novas.
O meu transtorno obsessivo-compulsivo [TOC], que estava adormecido desde os 6 anos, despertou. A relação abusiva foi o gatilho. Voltei a ter rituais obsessivos e a precisar de ser medicada. Como tomava medicação muito pesada, apetecia-me tudo menos ter relações, e o Miguel dizia: “Estar contigo só a ver filmes no quarto é deprimente.”
Nessa altura, se eu não fazia sexo acordada, ele fazia comigo a dormir. Eu deitava-me de pijama e de manhã estava despida. Ele tinha relações comigo sem me acordar e no dia seguinte não falávamos sobre isso.
Eu não sabia que isso era abusivo, como se o consentimento fosse uma coisa estanque e estar com uma pessoa justificasse tudo. Pior: sentia-me culpada por estar zombie por causa da medicação e ele mostrava-se zero sensibilizado para a minha doença.
“Dizia que se suicidava”
Nesse verão dos meus 17 anos, os meus pais não fizeram a ligação entre o namoro e o regresso da minha TOC. Presumiram que tinha que ver com os exames, o stresse. Hoje, ainda estou medicada, embora menos, e tenho uma vida normal.
A minha mãe tinha reagido com apreensão quando lhe contei que namorávamos. Quis saber se era sério da parte do Miguel, jantámos os três e ele disse-lhe que, se o meu pai não aceitasse, podia esperar que eu fosse maior de idade. O meu pai recusou-se a aceitar. Disse-me: “Ele tem uma visão do mundo que tu não tens, não estão em pé de igualdade. Não pode acontecer.” A partir daí, foi como se o assunto não existisse, mas sei que discutia com a minha mãe por causa disso.
Ela ainda hoje se culpa por ter acreditado nas boas intenções do Miguel. Quando lhe contei que tinha sido abusada sexualmente, facto de que só me apercebi depois de conversas com amigos e psicólogos, culpou-se por ter sido mais amiga do que mãe. Mas a verdade é que ela sempre disse que a nossa relação não era boa porque o Miguel não se inibia de discutir à sua frente, de bater com portas, de me insultar.
Até que, na noite da passagem de ano 2019-2020, tirei uma selfie com um amigo dele ao jantar, e, quando saímos, enfiou-me no seu carro e agarrou-me no pescoço, contra o vidro, enquanto gritava comigo. Que eu lhe tinha faltado ao respeito, era uma oferecida, tinha vergonha de mim. Os insultos do costume.
Fiquei com marcas que nos dias seguintes escondi com golas altas. A quantidade de vezes que penso que poderia ter um processo, mas não tirei nenhuma fotografia, não tenho provas! E esse acontecimento passou a ser usado para me humilhar. “Lembras-te daquela vez em que tiraste uma selfie…?” Na altura, eu achava que tinha estado mal, estava demasiado dentro para ver de fora.
A pandemia para mim foi incrível. Era um alívio não ter de estar com o Miguel. Falava imenso com os meus amigos! Porque, quando estava com ele, nunca podia usar o telefone, e, se estava com amigos, tinha de trocar mensagens com ele. Tinha tentado acabar muitas vezes, mas ele dizia que se suicidava. Até que um dia me contaram que o tinham visto com outras raparigas e mandaram-me provas. O namoro terminou no verão de 2020, com ameaças da parte do Miguel.
Gostava de ter lido um testemunho semelhante para perceber as coisas mais cedo. Se puder usar a dor com que vivo para fazer com que a dor de alguém acabe… Esta é uma realidade muito mais comum do que imaginamos.
Depoimento recolhido por Rosa Ruela