Naquela noite, ao olhar para o meu filho Afonso, com apenas 2 anos, só conseguia pensar que não era justo. Tinha sido tão difícil ser mãe e, horas antes, numa consulta de rotina no Hospital de Santa Marta, em Lisboa [era acompanhada em consultas de rotina de três em três meses, desde os 15 anos], disseram-me que tinha de ser operada com urgência no dia seguinte. Tinha 29 anos e sentia um enorme medo, sobretudo pelo meu filho, caso algo corresse mal.
A minha história começa na adolescência. Quando cheguei ao 9º ano de escolaridade, por ter optado pela área de Desporto, foram-me solicitados vários exames de saúde. E foi precisamente nesse momento, através de um eletrocardiograma, que surgiu o diagnóstico de bloqueio auriculoventricular (BAV) completo congénito. Era aquilo a que se costuma chamar doença silenciosa, pois nunca tive quaisquer sintomas que pudessem indiciar que estivesse doente. A notícia trouxe-me uma enorme revolta. Praticava atletismo desde os 5 anos e considerava-me uma jovem saudável.
Passei por uma fase de negação, em que repeti os exames para perceber se o diagnóstico seria mesmo o mais correto, até porque tinha a intenção de me candidatar à Força Aérea, o que se tornou impossível.
Passaram alguns anos, sempre com consultas de rotina, e já tinha sido avisada sobre a possibilidade de ter de colocar um pacemaker. No dia em que me detetaram 39 batimentos cardíacos – sem que me apercebesse –, não havia tempo a perder. A bradicardia [ritmo irregular ou lento] estava a piorar de tal forma que eu poderia “morrer sem sentir”.
Comecei a aperceber-me da gravidade da situação, mas não tive tempo para pensar nem processar a ideia. O médico só me dispensou umas horas para ir a casa, devidamente medicada, para ver o meu filho, com a condição, porém, de me apresentar no dia seguinte, logo às sete da manhã, para ser a primeira a ser operada.
Casei aos 20 anos com o Jorge, passei por três abortos espontâneos antes do nascimento do Afonso e fui sempre vigiada de perto, por ser uma gravidez de alto risco. A certa altura, sentia que dava um passo em frente e recuava dois. Tudo o que desejava era-me negado, e não sabia como lidar com a situação.
Já tinha sido avisada sobre a possibilidade de ter de colocar um pacemaker. No dia em que me detetaram 39 batimentos cardíacos – sem que me apercebesse –, não havia tempo a perder. A bradicardia [ritmo irregular ou lento] estava a piorar de tal forma que eu poderia “morrer sem sentir”
A implantação do pacemaker realizou-se com anestesia local, e o procedimento foi relativamente simples. Curiosamente, apesar de nunca ter tido sintomas de alerta, após a cirurgia percebi que estava mais ágil e até um pouco acelerada. Passei, depois, a ter de ir a consultas de rotina, que começaram a ser espaçadas no tempo, para avaliação do “estado” do pacemaker e dos batimentos cardíacos. É também nesse momento que nos informam da durabilidade restante do dispositivo e se o mesmo está a funcionar a 100%. No fim do seu “prazo de validade”, tem de ser substituído através de nova cirurgia.
Resolvi ganhar coragem e tentar ter um segundo filho. Devidamente monitorizada, não deixei que o medo derrubasse o sonho e decidi que, se tudo corresse bem, se fosse um rapaz, seria Salvador e, se fosse rapariga, chamar-se-ia Vitória. Sinto que esta gravidez foi mais tranquila, porque o facto de ter o pacemaker dava-me muito mais segurança do que na primeira gravidez. Há 15 anos, nascia então o Salvador, e tanto ele como o irmão, Afonso [hoje com 19], são a minha luz e razão de viver.
Sempre fui uma pessoa prática, e passam-se dias em que me esqueço completamente de que tenho um pacemaker. Passou a fazer parte de mim.
“Segui em frente e ajustei os sonhos”
O dispositivo costuma durar entre oito e dez anos, mas, no meu caso, consegui ultrapassar o limite. Em plena pandemia, a 5 de janeiro de 2021, foi preciso substituir o pacemaker. Acho que ia mais determinada e com menos medo do que da primeira vez.
Os meus filhos acompanharam-me logo de manhã; a cirurgia realizou-se com anestesia local, e eu estive sempre acordada. Chega a ser fantástica a forma como tudo decorre, o facto de sentirmos os movimentos, os fios a serem puxados e a substituição do dispositivo. O cirurgião vai falando connosco durante o procedimento, tira as nossas dúvidas e, ao fim de um tempo, se estiver tudo bem, voltamos para casa. Foi o que aconteceu comigo. Tive alta no final do dia, com algumas recomendações para evitar esforços, e fui sempre muito cuidadosa. Contudo, ainda assim, fui operada numa quinta-feira e na segunda-feira seguinte já estava a trabalhar.
Acho que a primeira vez foi mais difícil, porque a ideia de ser submetida a uma cirurgia ao coração é assustadora. E o facto de sentir algo estranho no corpo tornou a habituação mais difícil. Desta segunda vez já não estava a entrar em território desconhecido. Voltei a sentir agilidade e recuperei alguma energia que já ia falhando, pelo facto de o primeiro pacemaker estar em “fim de vida”.
Colocar duas vezes um pacemaker deu-me a oportunidade de ter um coração saudável e de ver os meus filhos crescer. Segui em frente, ajustei os sonhos e não vivo a doença. Pratico zumba, faço caminhadas, tenho uma vida normal e com qualidade.
Aos 46 anos, confio totalmente na equipa incansável do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, e tenho a sorte de poder afirmar que sou muito bem acompanhada no Serviço Nacional de Saúde.
Apesar de saber que as pessoas com problemas de coração não podem saltar de paraquedas, continuo a alimentar o sonho. A Ciência evolui todos os dias. Quem sabe se, um dia, não será possível… visao@visao.pt
Depoimento recolhido por Cláudia Pinto