Como já nasci com uma doença chamada Atrofia Muscular Espinhal, uma doença neuromuscular que vai enfraquecendo os músculos ao longo do tempo, nunca me revoltei. Não gatinhei nem andei e não tive uma infância como a de outras crianças. Esta foi sempre a realidade que conheci.
Por volta dos seis meses, a minha mãe começou a aperceber-se de que eu ficava bem onde quer que ela me colocasse. Eu não mexia as pernas quando me trocava a fralda nem tinha qualquer instinto de me mover. Levou-me a um pediatra, que desvalorizou os sinais e achou que ela estaria a comparar-me com os meus dois irmãos mais velhos, pois os bebés desenvolvem-se de maneira diferente.
A minha mãe não ficou descansada, procurou uma segunda opinião e, apesar de este médico ter demonstrado uma posição parecida com a do colega, optou por encaminhar-nos para um neurologista. Depois de ter sido submetido a inúmeros exames, fui diagnosticado com esta doença de nome estranho sobre a qual os meus pais nunca tinham ouvido falar.
Depois do choque inicial, a minha mãe decidiu deixar de trabalhar, ficando o meu pai a assegurar o sustento da família. Ela era chefe de linha numa fábrica têxtil e gostava do que fazia, mas a sua prioridade foi sempre a de me proporcionar uma vida o mais normal possível. A nossa batalha começou a partir desse momento. Na escola, fui sempre bem acolhido pelos colegas de turma e jogava futebol, uma paixão que tenho desde pequeno. Sim, é possível fazer parte de uma equipa numa cadeira de rodas.
Apesar da sorte que tenho tido com as pessoas com quem convivo, ainda noto algum constrangimento, principalmente ao nível da interação inicial. Julgo que isto se deve sobretudo à falta de representatividade das pessoas com deficiência. Muitas vezes, quando são expostas, estão associadas ao carimbo de “coitadinho” ou de “herói”. Nada disto nos ajuda a avançar e são posturas que criam uma barreira para que sejamos vistos com maior relevância.
Gostava de ter seguido Psicologia, porque adoro falar com pessoas e perceber as suas emoções, mas acabei por me licenciar em Sociologia no ISCTE e posso afirmar que foi um acidente feliz. Gostei bastante do curso e ajuda-me nos projetos que desenvolvo atualmente, como o livro infantil Ricky, que lancei em dezembro de 2021 com o meu primo Lucas.
As crianças têm imensas perguntas e dúvidas sobre a cadeira de rodas e a forma como faço as minhas rotinas diárias. Deixo-as perguntar o que quiserem, pois acredito que o segredo para o mundo inclusivo está na educação. Este livro tem-me permitido ir às escolas dar palestras e demonstrar às crianças que, apesar desta limitação, não sou assim tão diferente delas. Também vou a universidades e a empresas, para partilhar a minha história, com o objetivo de demonstrar que os mitos só existem para quem os promove.
A revolta que não senti em criança surge de vez em quando, já adulto, porque sou humano, e a falta de acessibilidades para quem se desloca em cadeira de rodas é um enorme problema. Tenho de equacionar cada passo que pretendo dar, porque o País não está preparado para pessoas com necessidades especiais.
Depois de sair da universidade, comecei a procurar emprego e as primeiras tentativas foram muito frustrantes. Faço questão de informar sobre a minha incapacidade no meu currículo, até por uma questão de total transparência, mas talvez por isso não tenha tantas oportunidades para uma primeira interação, porque acabo por não ser sequer chamado para uma entrevista.
Recentemente, consegui uma oportunidade através da Associação Valor T. Correu bem, consegui o emprego e estou na área de Estratégia de Talento, em iniciativas relacionadas com a experiência de colaboradores no que respeita à diversidade e inclusão. Trabalho maioritariamente a partir de casa, mas sinto-me muito bem integrado na equipa.
“Trago valor à sociedade”
A minha doença é progressiva e só há seis anos é que surgiu o primeiro medicamento para travar a sua evolução. A nível científico, foi uma grande inovação, sobretudo em idades mais jovens. Iniciei este novo medicamento apenas no ano passado, mas já noto diferenças. Fui a uma consulta de rotina recentemente – faço reavaliações de seis em seis meses e sou acompanhado em várias especialidades – e já se notam algumas melhorias, não só ao nível da alimentação como também do cansaço, que diminuiu bastante.
Os exames complementares de diagnóstico revelam ainda melhorias respiratórias, o que é excelente, porque as consequências a este nível podem ser fatais. Faço fisioterapia, uma vez por semana, ao domicílio, através da Fundação do Gil, durmo com ventilação e tenho alguns cuidados simples no dia a dia.
Na minha página de Instagram partilho vários conteúdos, nos quais demonstro que, apesar “de não ter mobilidade, tenho personalidade”, e uso o humor para descodificar a diferença e mostrar como é viver numa cadeira de rodas. Foi esta a forma que encontrei para lidar com a minha doença e para deixar as pessoas mais descontraídas ao interagirem comigo ou com alguém com deficiência.
Tento sempre mostrar que a minha condição e as limitações não me impedem de trazer valor à sociedade. Tirei um curso superior, trabalho, escrevi um livro e contribuo positivamente para alertar consciências para a diferença.
Este ano gostava de fazer a minha primeira viagem de avião, de conhecer Paris e de desenvolver um projeto na área do turismo. Existem muitas páginas dedicadas a viagens, mas raramente temos acesso ao olhar de uma pessoa com deficiência.
Dependo de terceiros para todas as atividades do meu dia a dia e sem a minha mãe não podia ter a vida que tenho. Mas a minha doença não me limita. Os limites só existem na cabeça de quem os cria.
Depoimento recolhido por Cláudia Pinto