1 Entrei a correr, como sempre, pelo Fórum Dança dentro no então recentíssimo espaço na Penha de França, para dar a primeira aula de um curso que acabou por ser o berço do atual PACAP-Performing Arts Advanced Creation Arts Program. Entre os (hoje ilustríssimos) performers e coreógrafos, todos sentados à volta de um conjunto de mesas de escritório, encontrava-se Mickaela Dantas, acabada de chegar (de regressar?) ao velho Continente. Introduzi os meus (sempre) megalómanos planos para os próximos meses, defendi os mais ambiciosos objetivos que cada um dos participantes deveria conquistar.
Seguiram-se um milhão de perguntas práticas sobre o funcionamento das aulas e já não me lembro que raio de pergunta me fizeram mas sei que respondi com um incomodado: “Bom, mas quando digo grave, não me refiro a uma crise criativa ou um achaque amoroso! Grave é perder uma perna ou morrer-nos alguém numa guerra ou numa catástrofe, tudo o resto se resolve com arte!” ou algo assim. Fez-se um silêncio na sala que eu entendi como uma estranheza habitual num primeiro encontro onde se decidem metas. A sessão continuou, sem intervalo, e no final, deixando-se ficar para o fim, Mickaela levantou-se e veio ter comigo. Sorrindo. Só então reparo que não tinha uma perna. Ela disse-me algo como: “Acho que vou gostar de você! Tenho uma ideia para uma performance em que eu queria voar! Acha que dá para fazer aqui neste curto espaço de tempo?” E eu disse: “Claro que dá.”
2 Passámos os meses seguintes a debater e a experimentar voar na sala de ensaios do fórum dança. Com barras de ballet, com cordas, com muletas, duas, três, sem muletas, com próteses e muletas e cordas, com tudo o que havia à mão. Um dia, a Mickaela pergunta-me: dá para apresentar o espetáculo na rampa? (Para quem não conhece o espaço, a sede do Fórum Dança fica num antigo armazém da Assírio & Alvim de cujo único vestígio é um precioso cartaz à entrada com uma foto do Ruben A. no Egito que um dia eu vou roubar. Os escritórios encontram-se ao fundo de uma rampa que denuncia que o espaço foi em tempos uma garagem e as salas de ensaio ficam no piso térreo.
– A ideia é mesmo essa., disse-lhe eu. Usar todo o espaço.
A Mickaela passou o último mês de ensaios, em pleno inverno, deitada no chão rugoso de cimento, a ensaiar, arranhando o corpo, moendo os ossos, trepando paredes e equilibrando-se entre elas. E nós, espectadores, assistíamos do varandim, e conseguíamos imaginá-la a voar. Ainda assim, faltava-lhe qualquer coisa, confessava. Era maravilhoso vê-la dançar, mas ainda era um exercício de mestria, de controlo do corpo, uma teimosia coreográfica. E isso poderia bastar, mas não lhe chegava.
Passávamos horas a discutir e a beber cafés e a pensar: como é que se voa quando não nos levantamos do chão? Chegou o dia da estreia, e a peça “estava quase lá mas ainda não estava lá”. Umas horas antes do espetáculo a Mickaela vem a correr dizer-me: “Já sei! Podes ficar ao lado da luz, lá em cima e quando eu chegar ao final da rampa, depois de rastejar pelo chão e pelas paredes, e me agarrar às grades que separam a rampa do escritório tu apagas a luz, esperas uns segundos, e voltas a ligar, pode ser?” Pode ser.
Chegou a estreia e o Fórum estava à pinha. Os espectadores colocaram-se em arena, à volta da rampa. Apenas eu do lado oposto, a ver o espetáculo em espelho, nervosa por ela e pela minha deixa. A performance foi mágica. De pé, os espectadores estavam paralisados perante a força do movimento de Mickaela enquanto ela desenhava no chão e nas paredes um voo que se cumpria no nosso olhar. Quando ela chegou perto das grades olhou para cima, e no único movimento em que se colocou de pé, Mickaela agarrou-se às grades e trepou a uma velocidade estonteante. Eu desliguei a luz. Ouvi uma respiração nervosa do público. Acendo a luz. Ela já não está lá. Voara e o público só vira o impulso, a vontade, a determinação de um corpo que se recusa a ser impossível.