A tradição de uma prática musical enraizada na população civil e religiosa de Coimbra está documentada desde a idade média até aos nossos dias. As primeiras menções ao uso de cordofones nesta cidade, tais como a harpa, a cítara, as violas de arco, o saltério, a bandurra e o alaúde datam da primeira metade do século XVI e referem-se à comunidade monástica de Santa Cruz.
Mais tarde, chega-nos esta notícia: “Por aver devacidad em tanger violas , citharas, bandurras, cõ m.to scandalo dos seculares…mandamos que nenhum Religioso da nossa ordem uze dos tais instrumentos…” in Definição 64ª da mesa do Definitório de Santa Cruz de Coimbra em 25 de maio de 1605.
Os momentos de encontro e fruição musical da comunidade religiosa e da população civil são de assinalar, seja durante as missas e outras celebrações religiosas, nas festas cíclicas, que incluíam as procissões e cortejos dos ofícios, seja durante as representações teatrais de autores célebres como Gil Vicente ou Ferreira de Vasconcelos, nas quais a presença da música é constante e uma parte fundamental do tecido dramático dessas obras.
É este o contexto original que se vai constituindo como tradição, em diálogo com as duas principais instituições multisseculares, a Universidade e a Igreja e que molda a identidade particular da cidade de Coimbra, até aos nossos dias.
Nos numerosos manuscritos musicais conservados na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra podemos identificar muitos dos autores e do repertório praticado nos vários modelos de cordofones, entre os quais as cítaras e as violas, em especial a partir da segunda metade do século XVIII.
É neste período (1780-1850) que a cítara é renomeada guitarra, seguindo uma tendência de revalorização social do instrumento iniciada em Inglaterra a partir de c.1740. O seu repertório escrito, de raiz erudita e de prática burguesa, é adoptado também pela comunidade estudantil universitária.
Os frutos do seu legado musical são hoje evidentes, pela quantidade e qualidade dos intérpretes das suas peças mais difíceis, algumas das quais nem ele próprio conseguia executar em público
As sonatas, os minuetes, as contradanças, as marchas e as variações passam a ser o corpo central do repertório deste instrumento e o seu uso no acompanhamento do canto, das modinhas e dos lunduns às árias de ópera mais em voga, associam-na às práticas musicais domésticas das classes mais elevadas de Coimbra.
A cítara popular, também designada nas Beiras por cítara campeira ou cítara toeira, tocando as danças e as canções populares, persiste desqualificada e praticamente abandonada entre c.1850 e c. 1870, incapaz de vencer a concorrência da viola de arame (também chamada toeira) nas preferências de uso da população civil futrica da cidade.
O uso da cítara como instrumento de uso estudantil ressurge com grande impacto associado às serenatas e a figuras míticas como o célebre Hylario (1864-1896), a partir da década de 1880.
É também neste novo tempo que são publicados em Lisboa e no Porto vários métodos populares dedicados sobretudo a amadores e encorajando o autodidatismo com a invenção de sistemas de notação alternativos, etc. O repertório é quase só constituído pelos fados corridos e menores, com variações muito populares e de execução acessível.
Surgem também os grupos de instrumentos de corda pulsada, sendo o mais importante a Tuna Académica da Universidade de Coimbra, fundada em 1888 e que integra violinos, bandolins e violões de modelos variados.
Muitas outras tunas e trupes nascem nesse período associadas a Associações Mutualistas de Cultura e Recreio, ligadas a empregados do comércio e às quais estão associados Gonçalo Paredes (1873-1915), avô paterno, e Manuel Rodrigues Paredes (1874-1948), tio-avô de Carlos Paredes.
Nascido em Coimbra, em 1925 e aí vivendo parte da sua infância, Carlos Paredes (CP), absorveu diretamente do seu pai, Artur Paredes (1899-1980), e de sua mãe, Alice, muitas das memórias desta herança imaterial, apesar de negar a aprendizagem direta da cítara com o seu pai.
O contributo inovador de Artur Paredes no fabrico da cítara do modelo de Coimbra é hoje reconhecido e fez-se em diálogo com os mestres violeiros João Pedro Grácio Junior (1903-1967), e com o irmão deste, Joaquim Pedro Grácio (1912-1994).
Miguel Torga chamava-lhe “O Rei Artur” e afirmava a supremacia absoluta na composição e execução de solos no período áureo da canção de Coimbra (1920-1950). Apesar de já ter editado discos com algum sucesso, foi a transferência da família para Lisboa em c.1931, por razões profissionais, que trouxe a possibilidade de divulgação da música de Artur Paredes em programas regulares, para um público muito mais vasto, sobretudo depois da criação da Emissora Nacional (1935).
É esta nova atividade que vai permitir a CP realizar a função de “segunda guitarra” e criar, a partir do acompanhamento das peças do seu pai, a génese de algumas das suas mais brilhantes composições solísticas.
Carlos Paredes desde cedo alimentava o sonho de revalorizar a cítara portuguesa através da composição de peças originais de pendor virtuosístico e do recurso a peças de “grande efeito”, como eram as Czardas de Monti, as transcrições de valsas de Chopin e de Caprichos de Paganini, etc.
Na época (anos 1960), já estava totalmente esquecida a figura do concertista de cítara, cuja fama no período final da monarquia, na corte de D. Carlos e nos salões palacianos de intérpretes como Reynaldo Varela, Salgado do Carmo, Carmo Dias ou Júlio Silva, foram exemplos inspiradores das gerações precedentes.
Mas, como CP me contava amiúde, as história e os discos antigos a que tinha tido acesso na adolescência inspiravam-no no seu projeto de revalorizar musical e socialmente o seu instrumento de eleição.
Carlos tinha tido algumas lições de rudimentos de violino e piano mas a sua paixão era a de tocar e compor para a cítara (a que ele também chamou “cistro”, em tradução direta do francês “cistre”, num programa impresso dum recital, em 1966).
Com o convite, em 1963, para compor a música do filme de Paulo Rocha Verdes Anos, no qual é acompanhado por Fernando Alvim, na guitarra hispânica, surge a oportunidade de organizar pela primeira vez um programa de recital com o seu repertório original, embora de pequena duração.
Surgem também as primeiras gravações com Alvim para a etiqueta Alvorada, gravadas no mesmo estúdio e pelo mesmo técnico de som do filme, Heliodoro Pires, de quem também fui amigo e que gravou o meu primeiro disco em 1968.
Eram raras as oportunidades de apresentação pública nessa altura e a violência traumática da repressão da PIDE e da Censura tornavam, de facto, quase impossíveis as apresentações em concerto que não integrassem a programação formal de teatros ou auditórios controlados pelo Estado, com exceção da Fundação Gulbenkian e de associações como a Juventude Musical Portuguesa ou o Círculo de Cultura Musical, etc.
Este contexto facilitou a aproximação de CP a figuras do movimento de renovação da canção de Coimbra, como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Goes, etc. Mas foi graças à admiração e apoio direto de João Bagão que insistiu em apresentá-lo a Amália Rodrigues, pedindo a sua ajuda para conseguir gravar na empresa Valentim de Carvalho, que uma nova etapa criativa se veio a concretizar.
Nascem desta nova parceria os seus álbuns mais inovadores e celebrados: Guitarra Portuguesa (1967) e Movimento Perpétuo (1972). A presença no catálogo da maior editora discográfica traz a CP alguns convites inesperados como a ida em 1967 ao Festival de Varadero (Cuba) e a participação, no mesmo ano, em espetáculos de Amália Rodrigues, no Olympia de Paris, organizados pelo SNI e nos quais participaram também o Grupo Verde Gaio (dança), o Duo Ouro Negro e os acordeonistas Fernando Ribeiro e Fernanda Guerra.
CP fazia uma pequena intervenção tocando três ou quatro peças mas deixando uma marca forte. com a sua particular energia e postura única na execução do seu instrumento, quase coreográfica e muito performativa, como se diria hoje.
Carlos Paredes tinha criado uma persona própria como solista, reclamando sempre o seu estatuto de músico amador e a suposta “menoridade” da sua produção criativa – que, aliás, coincidia com a apreciação crítica que dele faziam alguns compositores eruditos, como Lopes Graça que ele muito respeitava e admirava.
Mas o seu desejo de promover a cítara como instrumento solista de concerto, a par com os restantes cordofones já bem aceites, só teve oportunidade de concretização na última década da sua vida ativa (1983-1993), infelizmente marcado por uma produção criativa de menor qualidade do que a do seu período áureo (1960-1974).
Tendo-o conhecido pessoalmente em 1967 e assistido à preparação do seu primeiro LP, foi sobretudo após a Revolução de 1974 que o nosso convívio próximo se intensificou, tendo ambos feito parte do grupo que percorreu o país de norte a sul, com a colaboração do Grupo Outubro (direção de Pedro Osório), os atores Pedro Pinheiro e Io Appoloni e a fadista Maria Amélia Proença, entre outros.
Nas longas viagens que fizemos juntos em Portugal, eu conduzia o carro, a meu lado seguia Carlos Paredes e no banco de trás, seguia o Fernando Alvim e, por vezes Américo Silva, célebre acompanhador de Artur Paredes. Partilhámos também os palcos internacionais em espetáculos na Bulgária, na Finlândia, na Alemanha, com episódios inesquecíveis de convívio e de humor.
Os frutos do legado musical de Carlos Paredes são hoje evidentes, pela quantidade e qualidade dos intérpretes das suas peças mais difíceis, algumas das quais nem ele próprio conseguia executar em público, deixando-nos apenas o testemunho da sua gravação em disco (Movimento Perpétuo).
Como muitas vezes me confessou e eu respeitei sempre durante a sua vida ativa, não gostava de ouvir outrem a tocar as suas músicas. A partir de 1993 comecei a divulgar a sua produção citarística em conjunto com as minhas próprias peças, nos palcos de festivais e auditórios internacionais a que tive acesso, como homenagem ao seu enorme talento e à nossa amizade e companheirismo de muitos anos, testemunhado por muitos ainda hoje vivos.
Saliento também o esforço notável de Paulo Soares (1967), Coimbra, ator de uma revalorização da obra de Paredes, com a edição de partituras em notação convencional e em cifra no seu livro de 1997.
Em 1999 , com a edição do meu livro A Guitarra Portuguesa, tive também oportunidade de publicar uma antologia do repertório do instrumento, da Idade Média ao final do século XX, incluindo peças de CP transcritas por mim em partitura.
Ricardo Rocha (1974), de Lisboa, e Miguel Amaral (1982), do Porto, e nas mais novas gerações uma lista muito apreciável de intérpretes de ambos os sexos, são os frutos audíveis e continuadores do legado musical de Carlos Paredes. Que, no ano em que se celebra o centenário do seu nascimento, está mais presente nos programas de concerto do que durante a sua própria vida.