É uma viagem que passa por Nova Orleães, pelo swing e pelo bebop, para acabar na fusão e na música portuguesa, duas dezenas de temas que vão marcar o compasso da história do jazz entrecruzada com a de Luís Villas-Boas (LVB). Um musical jazzie que é uma megaprodução inabitual na cena jazzística portuguesa. E nessa medida, “muito desafiante”, como diz ao JL João Moreira dos Santos (JMS), o impulsionador desta homenagem, que nasceu de uma constatação: “São histórias inseparáveis”.
E logo à nascença, uma coincidência que está na origem do espetáculo Tudo Isto É Jazz! que a 9, à noite, sobe ao palco do grande auditório do CCB. É que o investigador e divulgador descobriu que curiosamente LVB nasceu em 1924, ano em que teve lugar o primeiro concerto de jazz em Portugal por um grupo estrangeiro, o Pan-American Ragtime Band, no Teatro da Trindade, integrado numa companhia de revista espanhola. “Era uma história boa de mais para não se contar”, adianta com entusiasmo. “Recolhi recentemente essa informação, na pesquisa para o livro sobre os cem anos de jazz em Portugal que estou a escrever. Foi noticiado na primeira página de O Século, com uma fotografia do grupo, todos juntinhos à volta do piano”. “E houve uma boa reação, ao contrário do que aconteceria mais tarde, em que se publicaram artigos hostis ao jazz, violentos e racistas, intitulados, por exemplo, ‘A hora preta’ ou ‘O triunfo da escarumbocracia’”.
Em contraponto, Luís Villas-Boas (1924-1999) seria um apaixonado defensor e divulgador do jazz no país, tendo fundado o Louisiana, em Cascais, o Hot Clube de Portugal, na Praça da Alegria, em Lisboa, e o Cascais Jazz, festival por onde passaram, entre 1971 e 1988, grandes nomes como Miles Davis, Duke Ellington, Sarah Vaughan, Charles Mingus, Ornette Coleman, Charlie Haden ou Wynton Marsalis.
Tudo Isto É Jazz! acompanha esse destino “através das suas próprias palavras”, como salienta JMS: “Quisemos que as pessoas o reconhecessem, e se ficcionássemos muito poderia perder-se o seu discurso”, diz. “E construir um espetáculo que vai do nascimento até ao período em que começa a ter Alzheimer e pouca memória, acabando com o funeral, como foi há 25 anos, no cemitério do Alto de São João, com músicos a tocar um jazz fúnebre ‘à Nova Orleães’”.
A “hercúlea investigação histórica” de JMS, que já deu uma dezena de livros, acentua Carlos Antunes (CA), que assina a encenação do espetáculo, está na base do trabalho dramatúrgico feito por Fernando Villas-Boas, que teve a preocupação de manter as próprias expressões que LVB usava. “Era um grande contador de histórias e tínhamos muito material, pelo que procurámos verter tudo isso no texto”, adianta. “Esse foi o primeiro trabalho de aproximação para tentar apanhar o seu gesto, a forma de pensar e contar. Além disso, tentámos tocar ainda que brevemente a sua vida nas suas diferentes valências, profissionais ou de sindicalista, e de uma forma mais poética no final. E havia tanto que dizer”. De alguma maneira ele foi, sustenta o encenador, “um artista”, e “um artista não morre, sai de cena”: “Ele foi saindo devagar, deixando o testemunho para a geração nova que tinha ajudado a criar”.
A CRUZADA DE UM HOMEM COMBATIVO
“Muito combativo pelas suas ideias”, mas “sensível e com sentido de humor”, segundo observa ainda CA: “Foi um homem extraordinário”. Ressalva, por outro lado, o “risco” que é “pôr em palco alguém que existiu, sobretudo tão próximo de nós”. João Lagarto assume essa “responsabilidade acrescida” de protagonizar Luís Villas-Boas. “Ele era muito dinâmico e centrado no seu objetivo de vida, que era divulgar o jazz”, salienta o ator. “Mesmo quando foi trabalhar para a aviação, a sua intenção era poder viajar mais barato e andar pelo mundo a ouvir a sua música. Era um homem muito moderno para o Portugal da época”. E como recriar uma figura tão marcante? “Tenho a sensação de que estou a fazer uma coisa que nunca fiz, uma imitação”, afirma. “Embora já tenha representado personagens que não eram ficcionais, neste caso o objetivo é conseguir a maior parecença possível, um processo um pouco novo para mim, e que está a ser muito interessante”.
João Moreira dos Santos já deu por si a pensar o que seria do jazz em Portugal se LVB não tivesse nascido a 26 de março de 1924. “Talvez fosse muito diferente para pior, porque ele foi realmente um pioneiro, abriu as portas todas”, constata. “Era um homem do jazz que decidiu fazer tudo por esta música, para ela ter um conhecimento digno no país. E fez programas de televisão, de rádio, lutou pelo ensino. Somos todos herdeiros do seu trabalho”.
Luís Villas-Boas, o pai do Jazz em Portugal é o nome do livro de João Moreira dos Santos que será lançado também a 9, ao fim da tarde, no CCB. A obra reúne um conjunto de entrevistas dadas a jornais e revistas portuguesas e a uma publicação belga. “É o Villas pelo próprio Villas”, explica JMS. “São entrevistas muito abrangentes, fundamentais para perceber quem foi esta figura, o que fez e pensava. Barros Veloso, que assina o prefácio, notou a importância que dava ao ensino a partir dos anos 70, falando da necessidade de uma escola. E a grande esperança que tinha em que a juventude acordasse para a música de qualidade, o jazz”.
A JMS, impressionou o facto de LVB ser um homem “solitário”, apesar de “muito empático” e de estar sempre rodeado de pessoas e conhecer muita gente da música e de outras artes: “Vi nele a solidão de um homem numa cruzada a defender a sua dama, a lutar contra tudo e quase todos, e com uma enorme vontade de partilha”.
UM ENCONTRO DE GERAÇÕES
Carlos Antunes faz notar, por outro lado, que a celebrar cem anos de jazz vão estar várias gerações de músicos em palco. “Barros Veloso, com 94 anos, amigo pessoal e médico do LVB, vai tocar, e teremos o maestro Jorge Costa Pinto, que esteve na primeira jam session no Chave d’Ouro”, sublinha. “E as gerações mais novas, dos filhos, mesmo netos dos primeiros que tocaram jazz. Será um momento único e premente, também porque o Hot, que foi o sonho do Villas, tem estado com a casa encerrada”.
E assim ficará por certo mais algum tempo até que sejam feitas as obras que permitam o regresso ao n.º 48 da Praça da Alegria, como foi entretanto decidido. Aí, far-se-á a reunião da “família” jazzística como a entendia LVB. “Para ele, o jazz era uma forma de estar com os amigos, com as pessoas, e espero que, de alguma forma, façamos justiça a essa sua memória com este encontro tão prazeroso”, diz CA. E não deixou de ser “desafiante” para o encenador conjugar no espetáculo duas realidades artísticas com práticas tão diferentes, como o teatro e o jazz.
Promovida pela Égide, Associação Portuguesa das Artes, e pelo HCP, a celebração do duplo centenário começa antes de Tudo Isto É Jazz! com uma série de propostas paralelas, à tarde, a partir das 17h, na sala Luís de Freitas Branco, no CCB. A seguir à inauguração da exposição 100 Anos de Jazz em Portugal, concebida pelo artista plástico Xico Fran, haverá uma mesa-redonda sobre o tema, moderada por João Almeida, com Barros Veloso, Pedro Moreira e João Moreira dos Santos. O Sexteto Syncopators recreará ao vivo a música do primeiro concerto de jazz norte-americano no nosso país, em 1927, pelos Wilson Robinson’s Syncopators, e irá estrear o documentário Luís Villas-Boas: a Última Viagem, de Laurent Filipe.