Vulcânica, negra e brilhante, a rocha-espelho, onde se pode refletir “o olhar da humanidade”, “a escuridão primordial onde começa a vida”: não foi por acaso que Filipe Raposo deu o nome dessa pedra escura, Øbsidiana, ao seu livro-disco, recentemente editado com a chancela da Tinta-da-China. É o segundo volume da Trilogia das Cores, que iniciou com Øcre, em 2019, e que irá concluir com Variações do Brancø. Um “ensaio sonoro”, gosta de dizer o pianista, compositor e orquestrador, sobre as relações simbólicas e artísticas que convoca a sua essencial escala cromática, o vermelho, o preto e o branco, ou como tocar o mundo em largas pinceladas.
Øbsidiana, que será apresentado em “concertos intimistas”, em outubro, a 16, no Coliseu do Porto, a 20 e 21, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, junta fragmentos de textos de vários autores e fotografias da sua autoria, numa anotação singular, página a página, dos temas, como explica, o “abrir de algumas janelas” para a leitura dessas composições. E para os sentidos da sua paleta de sons.
Nascido em Lisboa, em 1979, Filipe Raposo fez o curso de piano no Conservatório Nacional e de composição na Escola Superior de Música, depois um mestrado de Jazz Piano Performance, na Suécia, no Royal College of Music, de Estocolmo. Tem feito orquestrações e tocado com importantes orquestras portuguesas e estrangeiras, como a Sinfonieta de Lisboa, a Metropolitana, a St. Christopher Chamber Orchestra Vilnius, Accademia del Concerto String Ensemble, entre outras. Em 2011, estreou-se com o disco First Falls, afirmou-se como autor, revelando uma identidade musical que se confimaria nos projetos discográficos que se seguiram, A Hundred Silent Ways (2013), Inquiétude, com um quarteto de músicos suecos (2015), Rita Maria & Filipe Raposo Live in Oslo (2018), com a cantora Rita Maria, Art of Song: When Baroque Meets Jazz (2020).
Teve outra “escola”, tocou com Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fausto, Vitorino, Amélia Muge, Camané e outros cantautores, com quem descobriu a “poética da música”. Desde 2004, é pianista residente da Cinemateca, acompanha filmes mudos, e fez música para Lisboa, Crónica Anedótica, ou Nazaré, Praia de Pescadores, de Leitão de Barros, entre outros. Amanhã, 25, vai tocar sobre as imagens de O Sangue de um Poeta, na sala Manuel Félix Ribeiro.
Também escreve música para teatro, tendo feito a banda sonora de espetáculos, como A Reconquista de Olivenza, do Teatro do Elétrico, que em breve vai estar em reposição no S. Luiz, ou As Cortes de Júpiter, de Gil Vicente, com encenação de Ricardo Neves-Neves, no Laboratório de Ópera do CCB.
A sua música também tem sido cúmplice do desenho de António Jorge Gonçalves. Juntos criaram, entre outros projetos, a performance-concerto-instalação O Nascimento da Arte, improvisação no teclado e ao correr do traço do artista visual, um espetáculo que a 17 de setembro vão levar a Odemira.
E se é daqueles que tocam todas as teclas artísticas, por certo é toda a arte que se pode ouvir no seu piano.
Jornal de Letras: A música tem cor?
Filipe raposo: (riso) Bom, as cores, como os próprios sons, têm frequências e há relações sinestésicas que muitos compositores, ao longo da História da música, foram desenvolvendo. Estou a lembrar-me, por exemplo, de Olivier Messiaen, que fazia determinados acordes para certas cores ou agregados cromáticos, sendo que os acordes são precisamente agregados de sons. E claro que, ao juntar uma cor a outra, se obtém uma nova cor e isso é muito musical (riso). Inevitavelmente, acabei por procurar essa relação entre cor e som enquanto objeto artístico.
Na sua música, pode-se dizer então que há uma paleta de muitos sons e cores?
Está cheia de referências, que vão do cinema à literatura, das artes plásticas às performativas, e todas essas influências são muito importantes para me definirem enquanto artista. Alimento-me não apenas de música, mas de tudo o que está à minha volta, enquanto ser humano. Isso está nesta Trilogia das Cores que é, como gosto de dizer, um ensaio sonoro.
Uma reflexão sobre a criação musical?
Há uma dimensão pessoal de reflexão, de fora para dentro, mas também um movimento de dentro para fora, da minha relação com o mundo. Em Øcre e em Øbsidiana existem, por outro lado, muitas relações simbólicas que tento estabelecer nas composições que escrevi. A começar pela própria ideia de trilogia e da escolha das cores, um sistema ternário muito presente desde a Antiguidade Clássica. E não só na pintura, nas artes plásticas, também a própria literatura acabou por absorvê-las. Estou a pensar em Esopo, em fábulas como a da raposa vermelha que apanha o queijo branco que o corvo negro deixou cair… (riso) São três cores que estão realmente presentes em muitos domínios. Até na representação da estratificação social.
Em que sentido?
O vermelho, por exemplo, associado aos guerreiros, o preto ao trabalho, o branco à função sacerdotal. Por outro lado, em todas as cosmogonias, aparece o preto ligado às trevas primordiais…
Em Øbsidiana, um dos seus temas chama-se, precisamente, No Princípio Era a Noite. É um mergulho no escuro?
Nesse caos primordial de onde partimos. O primeiro tema, que abre o disco, Lascaux Cave, tem também a ver com o escuro da gruta onde começa a vida, como o útero materno. Aliás, foi nas grutas que nasceu a arte, a Humanidade. O ocre está ligado ao nascimento e não foi por acaso que comecei a trilogia por essa cor. É que foi o primeiro pigmento utilizado para representar formas artísticas, as pinturas rupestres. E nesse sentido foi uma homenagem que quis fazer.
À própria arte?
A esse primeiro momento da nossa História, a esses primeiros artistas. O ocre está, aliás, associado a muitos rituais de nascimento e de morte, porque o vermelho, a cor da terra, é também do sangue. Muitas vezes, pintavam-se os mortos com ocre, como se se lhes quisesse dar uma outra vida, para além da terrena.
Caminhos antigos
Na sua trilogia reflete essa dimensão ritualística, antropológica.
Sim, em A um Deus Desconhecido, o quinto tema de Øcre, por exemplo, há uma ligação direta ao Endovélico, uma espécie de divindade pop star da Península Ibérica (riso)… telúrica, pré-românica, depois assimilada pelos romanos. Esse disco estabelece uma série de relações exteriores não só com a criação da arte, mas também com uma dimensão mais existencialista, porque o ocre também está ligado ao amor, à paixão, ao desejo de poder. É uma reflexão o mais global possível sobre a influência da cor sobre a vida do sapiens (riso).
Num dos fragmentos textuais que publica em Øbsidiana, retirado do filme As Asas do Desejo, de Wim Wenders, fala dos caminhos antigos, aqueles que podem levar longe. Qual a importância que têm na sua criação musical?
Quando escrevi First Falls foi com a ideia das chuvas da criação. Mas há um ciclo da água, para que chova é necessário que primeiro haja evaporação, condensação (riso). Vejo as coisas assim, para essas primeiras gotas de água, para a minha afirmação pessoal como autor nesse primeiro disco, foi necessário todo um processo de maturação. E prezo muito esse caminho antigo.
No caso, a sua formação clássica?
Valorizo esses mestres que são uma espécie de faróis, que nos balizam, no espaço e no tempo, e sintetizam o essencial, para que possamos dar um passo em frente, subir um degrau na evolução humana. Enquanto criador, não consigo conceber a criação sem o conhecimento do passado. Olhar para o caminho percorrido ajuda-nos a sentir a gravidade. E a sermos seres humanos mais atentos, com capacidade de escuta e inteligência emocional. Essa é uma das funções da arte.
Escutar o outro?
Sensibilizar e criar o terreno fértil para sabermos estar atentos aos que estão à nossa volta.
O chão de Bach
Øbsidiana foi composto muito recentemente, durante a pandemia, e, nesse sentido, há nesse disco uma música que escuta o mundo atual, os refugiados, a guerra.
Toda a obra acaba por refletir, de alguma maneira, o presente. Este disco finaliza precisamente com o coral de Bach, ligado à tradição cristã. Mas não me importa tanto essa ligação, antes uma dimensão espiritual ligada à arte. Porque é um momento de transcendência, em que paradoxalmente sentimos o chão. Outro dia, falava com um amigo e dizíamos como tínhamos a sorte de ter nascido no pós-guerra. Mas a História foi sempre feita de ciclos, de tensão e distensão. Parece mesmo uma característica, talvez a mais perversa, do sapiens essa necessidade de conquistar, de adquirir território. Temos coisas maravilhosas, mas também esse lado negro, que está igualmente no Øbsidiana.
Tal como Øbsidiana, Øcre também encerra com Bach. Apenas coincidência?
Bach é justamente um dos compositores que me dá chão. Permite olhar o humano e saber que podemos ser incríveis criadores. Ou seja, através da criação de uma obra de arte, conseguimos fazer a Humanidade sonhar e avançar. Houve um momento decisivo, quando comecei a estudar música, que foi justamente conhecer a obra de Bach. Tenho plena consciência de que significou uma transformação.
Na forma como tocava?
Quando comecei a tocar as primeiras peças, ainda miúdo, não compreendia como funcionava aquele mecanismo. Era preciso abrir o relógio para ver, como fazemos com os brinquedos em criança. E havia uma certa ideia de brincadeira nesse tentar perceber como aquela partitura, o contraponto, funcionava tão bem. Mais tarde, fui estudar composição, porque havia essa necessidade de encontrar explicações.
Alguma obra foi especialmente desafiadora?
Há obras farol, recorrentes, e o maravilhoso é que, numa determinada fase da nossa vida, nos iluminam de uma determinada maneira, e quando as revisitamos mais tarde, brilham de outra, porque estamos numa fase diferente. E o curioso é que há sempre nelas coisas que nos aparecem pela primeira vez, mesmo depois de muito as repetirmos. Conhecer o universo dos grandes mestres é entrar no coração da Humanidade. Quando finalizei o Øcre com Sarabande, um andamento de uma suite inglesa para teclado, sem saber estava a definir que Øbsidiana iria terminar com Bach e obviamente também o terceiro volume da trilogia.
Com as Variações de Goldberg?
Ah, claro (riso). Sem dúvida. O terceiro disco vai, de resto, chamar-se Variações do Brancø. Um amigo meu antropólogo explicou-me um dia que os inuítes, que habitam um território gelado, distinguem mais variações no branco do que nós conseguimos ver. E identificam muitas dezenas para as quais têm palavras diferentes, até para os vários momentos do dia, da luz. Acho isso belíssimo. De alguma maneira, está relacionado com uma forma musical que é o tema e variações.
Três pilares
Como escolheu o piano?
A minha primeira relação com o piano foi muito livre, em brincadeira. A minha mãe cantava num coro e a primeira consciência musical que tenho é estar ao colo dela enquanto ela ensaiava. E, no final, eu ia ter com o pianista e começava a brincar com as teclas. Era o meu recreio musical (riso). Não por acaso, quando comecei a estudar de uma forma mais sistemática música clássica, tive sempre a necessidade de explorar o piano, de improvisar. Não me contentava apenas saber tocar a partitura. Isso foi decisivo e felizmente tive professores que nunca me contrariaram nesse sentido.
Foi assim que se aproximou do jazz?
Sim, pela vontade de improvisação. E mais tarde percebi que antes de tudo havia a música de raiz tradicional.
Um tema de Øbsidiana é ‘inspirado’ numa moda de Entrudo.
Todos os rituais da existência, como se diz do berço à cova, estão pautados pela música. Muitas dessas músicas tradicionais felizmente chegaram até nós e estão cheias de ADN humano. Na verdade, há corais de Bach inspirados em musicas tradicionais e muitos outros compositores o fizeram. São três os pilares que pautam a minha criação musical: a música clássica, a tradicional, e a improvisada. Compor é de certa forma improvisar, porque implica um pensamento exploratório. Aliás, compositores como Beethovan, Mozart, Chopin, também improvisavam.
Encontrar para procurar
E como se combina todas essas referências musicais, literárias, cinematográficas, quando compõe?
Acho que era Picasso que dizia que primeiro encontrava, depois procurava. O meu processo de composição é muito assim. Uso o piano como um laboratório onde são feitas muitas experimentações. Podem ser experiências texturais, associadas a uma progressão harmónica, a uma ideia melódica, que depois tem desenvolvimentos. Mas claro que cada autor tem a sua prática composicional.
Mas como encontra o primeiro acorde?
É sempre o mais difícil. É como encontrar o fio à meada. Pode ser qualquer coisa que vem de fora, por exemplo, no caso de Lascaux Cave, teve que ver com as gravuras rupestres, Foz Coa, um trabalho que tenho feito com o António Jorge Gonçalves, O Nascimento da Arte e toda a investigação que fizemos.
Um espetáculo que já levaram a muitos locais do país?
E ainda iremos apresentar no Museu da Ciência do Porto, no Teatro Viriato, em Viseu, nas Grutas do Escoural, em Montemor. E já a 17 de setembro, em Odemira, no início de um projeto do antropólogo Pedro Prista, professor do ISCTE, para a Câmara Municipal, que tem que ver com a ideia bonita de que cada pessoa é um museu.
Essa tem sido uma experiência gratificante?
Já tínhamos tido uma colaboração no disco da Amélia Muge, Não Sou Daqui. Ficou esse gosto, essa empatia artística e, anos mais tarde, em 2014, acabámos por fazer essa parceria. O António é um criador, um desenhador e ilustrador incrível, com uma grande capacidade de improvisação. E o que acontece em O Nascimento da Arte é que são dois artistas a improvisar ao mesmo tempo, numa narrativa em tempo real com linguagens diferentes. Para isso é preciso haver uma grande cumplicidade. E existe. Ele tem uma sensibilidade musical e eu em relação à imagem. Na realidade, as coisas contaminam-se. No caso de outro dos temas do disco, A Sombra de Peter Schlemihl, há uma ligação ao livro A História Maravilhosa de Peter Schlemihl, de Chamisso, e a personagem ganhou uma dimensão que eu poderia associar a um filme mudo.
É muito importante para si o cinema?
Aquilo que sou enquanto músico herdei também do cinema, até porque há uma série de paralelismos técnicos, questões formais e narrativas, elementos ligados à imagem e que também estão presentes na composição. Se aqui chegassem alienígenas, acho que o cinema seria uma belíssima forma de nos explicarmos (riso).
Musicalidade das imagens
Tem algum cineasta eleito?
Muitos. Começando de trás, Murnau e Victor Sjöström, que conseguem sintetizar muito bem o humano e estão a inventar o cinema. Depois Hitchcock, Stanley Kubrick ou Tarkovski, pela grande poética e musicalidade das imagens.
Também faz fotografia e publica algumas das suas imagens em Øbsidiana. Já pensou fazer uma exposição?
Não. Já expus algumas fotos minhas em coletivas, mas nunca senti essa necessidade. Dá-me muito prazer fotografar, gosto de material fotográfico. O confinamento, na verdade, permitiu que dedicasse mais tempo à linguagem fotográfica e cinematográfica. E este conjunto de fotografias faz parte desse ensaio sonoro, porque acabam por ter uma forma e fazer um sentido na leitura destes sons. E fazem a ponte com o próximo volume da trilogia.
De que maneira?
São imagens bastante abstratas, na verdade, close-ups de cubos de gelo. A água quando congela ganha estas texturas, frequências, podiam ser sons. A minha trilogia da cor acompanha essa evolução e metamorfose, começa com o elemento líquido, que pode ser a lava, ocre, que depois solidifica nesta rocha negra, a obsidiana, e irá acabar em gelo e água.
Porque pensou esta trilogia com o formato de um livro-disco?
Os meus concertos têm sempre uma dimensão de oralidade. Ou seja, não me sento ao piano só a tocar a minha música, preciso de comunicar pela palavra. Por outro lado, achei que o formato disco desvalorizou-se muito. E mesmo quando tem um booklet, se calhar as pessoas nem o abrem, porque o texto acaba por ficar muito pequeno. Este formato permitiu-me explicar e abrir algumas janelas para cada uma das composições. Pode ser apenas um excerto de um poema.
Por exemplo, Do not go gentle into that good night, de Dylan Thomas. São poemas que podem arrastar uma ideia musical?
A poesia é um bálsamo, consegue sintetizar muitas ideias, emoções, a Humanidade em poucos versos. Durante um período da minha vida, trabalhei muito com cantautores, o Sérgio Godinho, o José Mário Branco, o Vitorino, o Janita Salomé, e apercebi-me da importância das palavras, de como a poesia acabava por ser um leitmotiv para compor as músicas. Cada um deles foi uma escola para mim, com as suas influências e gostos. E uma forma de descobrir como a minha música podia ganhar uma dimensão poética e como a poesia pode ter uma dimensão sonora. É o que tento fazer com a música que escrevo, que não é apenas instrumental, procuro que tenha um caráter, uma carga da passagem do tempo e da existência.