“Mais vale sorrir do que cuspir pensamentos à solta”, canta a Márcia em Cabra Cega. Isto apenas na teoria, na canção, ela primeiro sorri e depois lá vai cuspindo. E nós deixamo-nos levar por aquele turbilhão de ideias, de forma viciante e viciosa, só possível em canções que são muito mais do que canções. E ouvimos de novo, para apanhar novas ideias, perceber melhor as palavras (é que ela come as sílabas, não como estilismo, mas porque também falamos assim) e cada vez se ouve qualquer coisa de novo. Mas reparemos na canção, a segundo faixa do disco Dá. Não é nada convencional, não tem propriamente um refrão, são palavras que se atravessam, de forma límpida e fluida, até à pergunta que intriga: “Mas de que raio estará ela a falar?” “É algo muito pessoal, não dá para te contar assim”, responde-nos a Márcia. E voltamos a ouvir a canção, agora como se fôssemos amigos íntimos, tentando perceber o que ela canta mas não conta.
A música tem uma estrutura simples, começa com uma guitarra em staccato, que se mantém mais ou menos inalterável até ao final. “Escrevi a letra usando apenas uma chave para fazer o ritmo”, explica. É a paleta sobre a qual se colora a canção. As cores são feitas de arranjos, que vão vestindo uma base simples, e sobretudo pelas modulações da voz. Um colorido vocal invejável. E a pintura vem a propósito, Márcia formou-se nas Belas Artes. Aliás, o desenho da capa foi feito a meias com a amiga Teresa Cortês. Com a música, praticamente deixou de pintar.
Márcia é uma cantautora em terra de cantautores. É que, feitas as contas, não há muitas por aqui. À memória, vem-nos Mafalda Veiga, Amélia Muge e pouco mais. “O mundo é dominado pelos homens”, resume Márcia. Mas quando fala de influências, prefere partir para mais longe, diz-nos Cat Power, Feist ou dos brasileiros. E também a trupe da Flor Caveira: “Quando ouvi o EP do B Fachada, decidi que tinha que conhecer estes gajos todos”.
A guitarra é uma ferramenta de suporte, onde investiu foi na voz. Primeiro, andou no Hot Clube e depois teve aulas privadas com Lúcia Lemos. ” Foi aí que aprendi mais”. Como se percebe pelo disco, Márcia gosta de se recriar com a voz. Não é apenas a virtude e o tom, é mesmo a criatividade interpretativa.
O seu percurso é uma história simples. Estudou em França e em Barcelona, encontrou a sua voz e entrou no Real Combo Lisbonense, de João Paulo Feliciano, que recupera música portuguesa dos anos 50 e 60.. Aquele músico e artista plástico, é pai de uma colega sua da faculdade. Participou na coletânea de novos talentos da FNAC e um EP da coleção da Optimus. De início escrevia em inglês, mas apercebeu-se de que certas coisas só era possível exprimir na língua materna. E ainda bem.
Este disco foi produzido por João Paulo Feliciano e misturado em Inglaterra. Cabe aqui um pouco de tudo: “Não se pode achar uma só cor , por isso é que a capa é tão colorida.” diz. E da palete fazem parte Cat Power, Beth Gibbons, Piazzola, Chavala Vargas e até mesmo Led Zeppelin. E da amálgama de cores saem quadros sonoros. São assim canções que Márcia nos dá.