É com um sorriso que Pepetela nota a coincidência: o personagem principal do seu novo romance também é reformado, condição que o escritor, nascido em 1941, já goza há algum tempo. E essa ligação, numa narrativa que defende que tudo está em comunicação, é mais um sinal de como a sua escrita sempre espelhou as suas circunstâncias.
Com uma das obras mais marcantes da literatura angolana e da língua portuguesa, Pepetela já nos deu, em mais de 20 obras, a luta pela resistência, a construção de um novo país, a guerra civil, os hábitos e os costumes em transformação. Em Tudo-Está-Ligado regressa a um tema a que tem dado especial atenção: o mundo rural, os vários reinos do país, nomeadamente os do Planalto Central de Angola, e as muitas escolhas que os próprios angolanos podem fazer para o seu futuro.
Tudo-Está-Ligado é uma narrativa com muitas viagens ao passado e com vários (des)encontros, incluindo amorosos, protagonizados por um major que depôs as armas (Santiago) e uma bancária a contas com a vida (Ofeka).
Isto anda tudo ligado, como sugere o título do seu novo romance e se diz tantas vezes?
Não há como fugir a essa ideia. Vemos em diversas situações, com as pessoas (mesmo as que não se conhecem) e no mundo em geral: tudo está ligado a tudo, tudo tem influência sobre tudo. Mas não parti para o romance com essa ideia, ela só surgiu no decorrer da escrita.
É também essa sua experiência pessoal, para lá das notícias que vamos tendo de ligações no mundo?
Muitas vezes, sim. Há sempre uma ligação, embora por vezes seja muito ténue. E, em outras situações, não se encontra nenhuma, pois o mundo é vasto e muito povoado. Talvez seja até o mais comum, mas inevitavelmente valorizamos o que se liga.
Escrever um romance é estar sempre à procura do que nos liga a tudo?
Também, embora aqui tudo dependa do tipo de escritor. Há aqueles que gostam de planear bem o que vão escrever e outros, como eu, que não sabem para onde vão. Pode haver uma ideia, uma imagem, uma personagem (ou a aparência de uma) ou uma música e mais nada.
Muitas vezes ponho-me simplesmente a teclar no computador, completamente à toa, até que surge uma palavra que desencadeia tudo. A situação muda quando se quer tratar determinado tema ou período histórico. Aí não se pode confiar apenas no que poderá surgir sem qualquer procura. É preciso investigar.
No caso de Tudo-Está-Ligado, qual foi o seu ponto de partida?
Queria tratar a história e os mitos (com variadíssimas versões) da origem do estado Kyaka, mais conhecido como Tchiyaka, alguns associados a determinadas pedras e elevações, como há muitas no Planalto Central de Angola. Quando me interessei pelo assunto, há muito tempo, li os estudos e a tese de doutoramento de Mesquitela Lima, a que agora regressei. Enquanto andava às voltas com este universo, surgiram-me as personagens: Santiago e Ofeka.
O que o interessou nos Tchiyaka?
Em parte, porque nasci em Benguela, que tinha alguma ligação a todos os reinos do Planalto Central, embora seja uma cidade junto ao mar. Na verdade, ao longo da sua história, muitos tchiyakas acabaram por vir trabalhar para Benguela, primeiro como escravos, depois como contratados (uma escravatura encoberta).
Havia também rotas e caravanas que atravessavam os seus territórios e que passavam por Benguela. Estas múltiplas ligações permitiram-me criar uma família com raízes nessa região. Foi este o meu ponto de partida. Mas rapidamente percebi que a ação devia decorrer no tempo atual e regressar, de vez em quando, ao passado.
Ao abordar a história dos Tchiyaka, o romance aborda a sabedoria, por vezes ameaçada, das sociedades rurais. Numa época de cidades cada vez maiores, é preciso uma especial atenção ao mundo rural?
Sem dúvida. Essa é uma preocupação antiga, desde os tempos em que tive contacto com sociedades muito afastadas das cidades e da influência europeia, nomeadamente a portuguesa, ao nível da cultura e da língua. Nesses contactos, observei uma série de tradições que desapareceram completamente das sociedades urbanas.
Quer dar um exemplo?
Assim de repente, lembro-me da escrita de As Aventuras de Ngunga. Na altura, queria ter uma passagem numa língua do leste de Angola. E ao pedir ajuda para a traduzir, disse ao tradutor que a personagem principal era órfã, ao que ele me respondeu que não havia palavra para isso (acabou por ficar: não tinha pai, nem mãe que o fez nascer).
Em algumas destas sociedades não existe a ideia de órfão. Se os pais de uma criança morrem, são rapidamente substituídos por alguém da comunidade. Os seus pais são os parentes que vivem com ele. Mas hoje suspeito que o conceito de orfandade já deve ter sido assumido…
Sabendo que o futuro vai ter cidades cada vez maiores, teme pelo muito que se perderá?
Sim, sim. Neste romance aborda-se a possibilidade de se escolher a sociedade em que se quer viver, defendendo influências de outras terras. No fundo, é a antiga reivindicação que pede tempo para os africanos poderem pensar no que querem ser. É por isso que algumas personagens deste romance lutam.
Porque em muitos casos são sempre forçados a ter de copiar uma parte ou a totalidade de determinados sistemas sociais, económicos ou políticos. Por que razão é que isto acontece? Lá está: porque está tudo ligado, para o bem e para o mal. Mas estes são pensamentos que, como disse, surgiram no decorrer do romance.
Foi a personagem de Santiago, um antigo militar reformado, que fez o romance avançar, ligando ideias soltas?
Completamente. Já era altura de ter como personagem principal um reformado, como eu [risos]. Mais tarde escolhi que fosse um militar, que tivesse um acidente e regressasse à sua terra natal. Mas tudo começou pelo nome, lembrando-me do Hemingway e do seu O Velho e o Mar. A partir daí, foi jogar aos dados com tudo o que estava em cima da mesa.
Sublinhou a coincidência de ser reformado a escrever sobre um reformado. Pode dizer-se que os seus romances têm espelhado, de uma forma mais próxima ou mais distante (no primeiro plano ou em pano de fundo, numa personagem ou num pormenor), as circunstâncias da sua vida, desde a luta pela Independência até à atualidade, passando pela construção de um novo país?
Sim, claro. São passados tão fortes que podem imiscuir-se numa história. Na maior parte das vezes, não tenho essa intenção, mas as coincidências mais ou menos óbvias surgem, tal como outros interesses que tenho de ordem social. Forçosamente, estas coisas acabam por aparecer e eu digo: ainda bem.
O Santiago também nasceu em Benguela…
É verdade. Regressa a casa para fechar o círculo. É nessa decisão que se vê como não coincidimos em tudo [risos]. Nunca consegui voltar a viver em Benguela e tentei várias vezes. A vida nunca me puxou para lá, mas para fora, para Luanda ou para as outras cidades em que vivi durante períodos mais pequenos. Talvez tenha sido essa saudade que me levou a escrever com Benguela e os Tchiyaka.
Em contraponto a Santiago, Ofeka representa o lado menos conhecido de Angola, a ligação (pela avó) às tradições ancestrais?
Num certo sentido, sim. Tenho encontrado até muitas obras que tratam deste assunto, sobretudo na ligação entre tradição e religião e na antiga questão da vida e do seu continuar depois da morte. De uma forma ou de outra, todos os angolanos têm essa preocupação, o que pode envolver religião, crenças, misticismos ou poderes sobrenaturais. Por isso, um romance que recua mais no tempo acaba sempre por abordar este tipo de questões.
A nível amoroso, as personagens deste romance também estão todas ligadas. Continua a interessar-lhe uma certa crónica social e de costumes, mais antigos ou contemporâneos?
É inescapável. Alguns aspetos podem até chocar alguns leitores, por serem pouco comuns ou por serem mal vistos numa sociedade que ainda é bastante patriarcal e machista. Neste sentido, Ofeka é uma mulher livre.
Não publicava um romance há seis anos…
Depois de lançar Sua Excelência, de Corpo Presente, passei por uma fase em que não me apetecia escrever nada, apesar de ter sempre muitas ideias. E como escrever é sempre sinónimo de prazer, não apressei as coisas. Depois, quando a necessidade da escrita surgiu, veio a pandemia…
Muitos escritores não conseguiram escrever durante a pandemia.
Pois, eu também passei por essa dificuldade. Era como se estivéssemos demasiado isolados do mundo. Escrever, naquelas circunstâncias, reforçava e duplicava o isolamento. Com esse sentimento, foi difícil retomar a escrita mais tarde. Mas quando senti que já tinha passado demasiado tempo, disse: não posso adiar mais. Felizmente, as ideias ligaram-se naturalmente.
O escritor José Eduardo Agualusa também acaba de publicar um romance passado no Planalto Central de Angola, Mestre dos Batuques, próximo do ambiente de Tudo-Está-Ligado. Angola ainda tem muitas histórias e geografias para contar?
Angola tem centenas de microcosmos. E há regiões pouco tratadas ao nível do romance, sobretudo a parte oriental. O mesmo, diga-se, acontece no sul e no norte. É por isso natural que surjam mais histórias. Conheço muita gente dotada para o fazer, mas a concentração de histórias em Luanda é fácil de explicar: a maior parte dos escritores vive lá.
Mudar de região é entrar em realidades muito diferentes?
Em muitos casos, sim. Cabinda, por exemplo, é um mundo à parte. No sul, somos dominados pela floresta equatorial até ao deserto. Também no sul, ainda há populações nómadas até à Zâmbia. A colonização também teve impactos diversos, havendo regiões que praticamente não foram tocadas, exceptuando um ou outro comerciante. É uma variedade cultural extremamente rica.
A caminho dos 50 anos da Independência de Angola, podemos afirmar que o romance, ao revelar essa diversidade cultural, tem feito, em muitas circunstâncias, as vezes dos historiadores, dos antropólogos ou dos sociólogos?
Houve um momento, de facto, em que só o romance desempenhava esse papel, aprofundado a ligação das pessoas ao seu país. Hoje, o contexto é diferente. Felizmente, há académicos com muito trabalho desenvolvido, mesmo quando enfrentam dificuldades ou escassez de meios. O escritor já não precisa de sentir essa urgência, mas pode continuar a chamar a atenção para um nome esquecido na História ou para outro aspeto qualquer. Mas uma coisa é certa: o romancista modifica sempre as coisas, não se pode tomar por verdade absoluta o que está nas suas ficções.
No seu caso, sentiu a missão de contribuir, com os seus romances, para a construção de um país?
Foi a minha contribuição. Muitos fizeram muito, de outra maneira. A minha passou pela literatura. Mas nem sempre tive isso em mente. Foram contributos para a tal reflexão que todos temos de fazer no sentido de definirmos o que queremos ser.
A literatura como fonte de debate, dando voz a quem não a tem?
É um dos papéis da literatura. Não é necessariamente o único, nem obrigatório. Mas é um papel que a literatura tem vindo a desempenhar desde que surgiu.
Deverá também a literatura desafiar poderes, ideias feitas, olhares exteriores?
Todos os cidadãos têm um dever de participação na sociedade. Um deles pode ser o de chamar a atenção para determinadas coisas. Não é propor soluções para problemas que existem, mas pelo menos dizer que eles existem. A ficção tem a vantagem de tocar nos problemas ao mesmo tempo que convoca emoções e empatia. Nesse sentido, acredito que os escritores, como outros artistas, têm um papel social.