Os Diários, inéditos, entre os 17 anos (1940) e os 30 anos (1953) são o “prato forte” do volume Eduardo antes de ser Lourenço, agora dado a lume por Luciana Leiderfarb.
Argentina de nascimento (de Buenos Aires), veio muito nova para Portugal, tendo-se licenciado em Filosofia pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa e começado no jornalismo aqui no JL, em 1992, escrevendo em especial sobre música.
Em 2016 foi-lhe atribuído o Prémio Gazeta de Imprensa, por um texto seu no Expresso, onde colabora desde 1996 e no qual publicou um primeiro matéria sobre o que viria a dar este livro, a propósito do qual a ouvimos.
O que a levou a começar a interessar-se pela “produção” escrita de Eduardo Lourenço muito jovem?
No meu percurso de jornalista, tive a oportunidade de fazer três entrevistas a Eduardo Lourenço. Tinha também lido alguns dos seus livros. Entrevistá-lo é uma experiência muito particular, e quem o fez sabe a que me refiro. Havia essa clareza de discurso, a qualidade cristalina das frases, quase que era possível passá-las intactas para o papel.
E era sempre surpreendente. Em 2021, quando soube que existia na Biblioteca Nacional uma sala a guardar o seu espólio, na qual ele tinha passado muitas tardes a trabalhar, a ajudar a identificar e datar documentos, achei que seria interessante ir lá e fazer um trabalho jornalístico sobre essa sala e o seu conteúdo. Mas claro que isso era impossível, porque para aceder a tudo o que lá está seria preciso passar lá anos. Tinha necessariamente de circunscrever a minha abordagem.
E como é que o fez?
Nessa altura, foi o João Nuno Alçada – que estava lá a organizar o acervo, e foi o seu grande organizador – que me guiou pelas muitas prateleiras e dezenas de dossiers. E chamou-me a atenção um em especial, em cuja lombada se lia ‘1940’. Perguntei o que era, e ele disse-me que eram os diários da juventude.
Ora, em 1940 Eduardo Lourenço (EL) tinha apenas 17 anos. Naquela estante estavam os diários e os escritos do professor desde esse ano até meados dos anos 50, na sua grande maioria inéditos. Para mim, foi um momento de revelação, soube logo que essa era a reportagem que devia fazer.
Devia fazer e fez. E depois…
O trabalho foi capa da revista do Expresso, em dezembro de 2021, e daí parti para outros temas. Até que, numa reunião com Guilherme Valente, o fundador e então editor da Gradiva, que detém direitos sobre as obras de Eduardo Lourenço, surgiu o tema das comemorações do centenário – e, quando referi a existência desses textos, ele manifestou logo vontade de publicá-los. Daí ao livro foi pouco mais de um ano de trabalho permanente, de transcrição e de edição, com descobertas incríveis sobre um homem que, aos 17 anos, pensava com a complexidade e a sistematicidade de um adulto culto.
Quais foram as ‘descobertas’ que mais a surpreenderam?
Para já, como disse, a maturidade, o facto de, apesar de muito novo, Eduardo Faria ser ‘já’ Eduardo Lourenço. Ainda assim, estava em construção, e essa busca é muito comovente. Há páginas em que ele treina a assinatura, nas suas várias formulações – Eduardo Faria, Eduardo Lourenço, Eduardo Lourenço de Faria.
Surpreendeu-me o uso da linguagem, porque desde o começo se percebe que ele tem uma enorme facilidade de escrita, e que esta faz parte do modo como pensa o mundo. Outro ponto importante é a sua abordagem filosófica, indagatória e crítica, seja qual for o assunto que sobre a mesa e muito antes de ele próprio saber que viria a construir obra filosófica.
Se EL pode ser contemplativo, e muitas vezes o é, a sua grande marca é a capacidade de olhar filosoficamente para as coisas, um olhar que vai muito além da aceitação do que é dado, mas que o questiona e, nesse questionamento, o modifica.
Que critérios presidiu à organização do livro, que começa com os Diários, que ocupam mais de metade das suas páginas, e acaba com os poemas?
Como explico na introdução, a forma como o livro está organizado tenta responder o mais possível à ordenação dos dossiês no âmbito do espólio. Pareceu-me sensato que os textos fossem apresentados ao leitor do modo mais próximo daquele em que se encontram no seu estado original. Por isso, tirando algumas pontuais alterações, segui a ordem que os manuscritos me propunham. Primeiro os diários, de 1940 até 1953 – quando ele perfaz 30 anos -, depois o resto: os escritos sobre temas específicos, um núcleo sobre Mário de Sá-Carneiro, outro mais filosófico intitulado “Liberdade e Situação”, os projetos de livros e de um romance, e os poemas.
Entretanto, cada uma dessas partes tem textos introdutórios, quatro no que respeita aos Diários – relativamente aos anos 1940-42, 1943-47, 1948-52 e 1953. Qual o objetivo desses textos?
O livro dirige-se a todos aqueles que o queiram ler, quer tenham tido ou não contacto com a obra de Eduardo Lourenço. Não se trata nem de uma edição crítica nem de um livro académico, mas de colocar à disposição de todos um núcleo de textos que antes se mantinha inacessível e praticamente desconhecido. A palavra-chave, para mim, é mesmo ‘acesso’. Por isso, não fazia sentido publicar os fragmentos sem lhes dar um contexto que fosse de alguma forma facilitador da leitura. Tentei que as introduções fossem curtas, simples e diretas, uma espécie de alavanca para continuar a ler.
O que é que todos os escritos reunidos no volume, sobretudo os diários, revelam quanto aos principais interesses, preocupações, etc., de EL nessa época?
Do núcleo de manuscritos da juventude, são efetivamente os diários que nos fornecem o material mais significativo, no sentido em que é neles que encontramos o início do seu pensamento, o momento inaugural de temáticas que viriam a estar presentes ao longo de toda a sua vida. É também neles que ficamos a conhecer a pessoa, os seus anseios, temores, sonhos, dúvidas. Estão lá a fé, Deus e a religião – que ele distingue -, as origens, a família, o amor, a infância, a procura da identidade, a morte, todas as perguntas existenciais que ele se colocou desde muito cedo.
E em matéria de livros e leituras?
Sim, estão também lá as leituras, as listas imensas de livros lidos e por ler, projetos de obras, a filosofia, a literatura, o teatro, a música, a relação com o mundo e com ele próprio, como argila que se vai auto-moldando. Portugal aparece como um país ainda incipiente em termos culturais – um aspeto que, mais tarde, ele aprofunda. E o sentido de humor, aquela ironia fina do EL posterior já se começa a ouvir, tanto na crítica ao ambiente académico da altura quanto, por exemplo, no relato surrealista de uma aula de lógica, no qual diz estar mais aborrecido que uma pescada…
Um dos temas que aborda, e se vê que o toca, é o da relação com os pais…
O Eduardo Faria destes textos é um jovem que entra em rota de colisão com a tradição católica e conservadora muito arreigada dos pais, e que se sente incompreendido por estes. A dada altura, sabe que está a desiludi-los por não poder corresponder àquilo que esperam do filho. Por outro lado, o seu é um olhar sociológico, que consegue inserir os pais num tempo e num espaço muito específicos, e assim explicar a sua distância ou dificuldade de comunicação. Há um conjunto de entradas na altura da morte dos pais que é realmente comovente, porque ao desaparecerem, diz ele, desaparecem aqueles para quem ele contava de modo incondicional.
Uma das coisas extraordinárias é como que um aluno interno do Colégio Militar, até ir para Coimbra, consegue uma tamanha formação cultural. Como é que isso se explica?
Numa primeira fase, EL é um autodidata voraz para quem os livros representam a única porta válida para o mundo. O que vemos é que ele não renega nada, não despreza nada: lê tudo aquilo a que vai acedendo. Cada livro lhe sugere mais leituras, numa cadeia sem fim, o que no fundo responde a uma curiosidade incansável. Isto faz com que, chegado à Universidade de Coimbra, ele se dececione. Esperava uma mentalidade mais aberta e encontra uma academia fechada sobre si própria.
Outra coisa que estes escritos da juventude mostram é que vem de trás, de sempre, a ambição de escrever e o apelo da criação.
É verdade: uma das descobertas deste núcleo de juventude reside na enorme quantidade de folhas soltas que simulavam ser a capa de um livro, com título, ano, cidade e autor. Em muitas lemos ‘Eduardo Faria’, noutras já Eduardo Lourenço. Destes projetos, ele chegou a começar alguns, nomeadamente peças de teatro, como aquela em torno da figura de Spartacus, que contém toda uma reflexão sobre o poder e a escravidão. Há também um excelente ensaio sobre Sócrates e o início de um romance. Nenhum destes projetos parece ser um esboço feito ao sabor da pena: o que vemos é uma tentativa de aprimorar muitos deles, fazendo várias versões. O mesmo se verifica em alguns dos poemas maiores, que ele reescreve até os considerar acabados.
E nos próprios diários aquela ambição e aquele apelo já são bem notórios…
Sim, não são poucas as alusões nos diários à vontade de escrever – numa diz mesmo: “Eduardo Lourenço de Faria. Eu devo fazer um romance.” E não podemos esquecer os seus heterónimos, os seus duplos, que por vezes assinavam os manuscritos com nomes como Tristão George, Tristão Bernardo ou, numa oportunidade, Eduardo Coimbra.