No início de A Palavra que Resta há uma carta que, passados mais de 50 anos, ainda não foi lida. E a nossa atenção está conquistada. Também porque Raimundo Gaudência de Freitas, o portador da missiva, é-nos apresentado como pensa, entre a oralidade em que viveu toda a vida e o mundo da escrita em que dá os primeiros passos.
O escritor brasileiro Stênio Gardel estreou-se literariamente com uma obra poderosa e tocante, cumprindo um sonho que acalentava desde os 13 anos.
Nascido em 1980, no interior do Ceará, na zona de Limoeiro do Norte, Stênio Gardel conseguiu superar o destino reservado a muitos no meio rural. Sempre mostrou interesse pela leitura e o da escrita surgiu pouco depois. Seguiu para Fortaleza, para completar os estudos, e hoje trabalha no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará.
Ao contar a história de Raimundo, Stênio Gardel contou também um pouco da sua, como partilha nesta entrevista e afirmou no discurso de agradecimento do National Book Award (para obra traduzida) que recebeu, um feito inédito para um romance de língua portuguesa:
“Crescendo como um menino gay no interior do nordeste do Brasil, era impossível para mim sonhar com uma honra como esta. Mas estando aqui esta noite, recebendo este prémio por um romance sobre a jornada de outro homem gay até sua auto-aceitação, eu quero dizer a todas as pessoas que já se sentiram erradas em relação a si mesmas que seu coração e seu desejo são verdadeiros e vocês são tão merecedores, como todo mundo, de ter uma vida realizada e alcançar sonhos impossíveis.”
A Palavra que Resta ganhou o National Book Award, um feito inédito para romances em língua portuguesa. Como recebeu o prémio e que importância tem para si?
Recebi o prémio com completo espanto. Quem me viu na cerimónia percebeu que fiquei em choque. Mesmo querendo muito, não esperava, até por nunca ter sido entregue a um autor de língua portuguesa. Lembro-me de estar na iminência de ser revelado o vencedor e de ouvir: “O National Book Award vai para…”
Um momento de Óscares que por norma vemos na vida dos outros…
Exatamente [risos]. E toda a cerimónia tinha esse figurino. Lembro-me de pensar a ouvir aquelas palavras: quero muito, mas se não ganhar tudo bem. Para quem saiu do interior do Cesará, no nordeste do Brasil, para estar naquele lugar já era um grande prémio. Vencer foi uma emoção enorme. Recordei muitos momentos da minha vida e evoquei a minha mãe. Vivi, no fundo, um grande sentimento de realização: o meu trabalho, a dedicação e a fé na história do Raimundo valeram a pena.
Foi um daqueles momentos em que se revê os momentos decisivos da vida?
Sim, foi isso mesmo. A minha vontade de escrever surgiu quando eu era muito novo, por volta dos 12, 13 anos. Nessa altura pedi à minha mãe para me dar uma máquina de escrever porque na minha cabeça era preciso uma para me tornar escritor. A minha mãe fez todos os esforços para me dar essa máquina que eu guardo até hoje perto da minha escrivaninha. É um símbolo da crença que sempre depositou em mim.
Como é que esse desejo de escrita se concretizou ?
Só consegui dedicar-me verdadeiramente aos 30 anos. Antes escrevia muito aleatoriamente, sempre guardando os começos de textos ou pequenos contos. Mas, em 2016, ao frequentar os ateliês de narrativa de Socorro Acioli, tomei a decisão de escrever a história do Raimundo e o romance A Palavra que Resta.
Sendo este um prémio para o autor e para a tradução, pensei muitas vezes nas dificuldades que tradutora teve, dada o seu enorme trabalho de linguagem…
A Bruna Dantas Lobato fez um trabalho incrível, é verdade. Ela é brasileira, também aqui do nordeste, e vive há muitos anos nos Estados Unidos da América. Foi um encontro muito feliz, a juntar ao do editor Michael Wise. Pude participar um pouco no processo, ler as provas da tradução e fazer algumas sugestões. As soluções da Bruna foram fantásticas, em alguns casos ampliaram o significado do texto.
Quis trabalhar a plasticidade da linguagem, encontrar uma outra forma de se expressão na língua portuguesa? A edição D. Quixote tem várias notas de rodapé…
Não foi bem uma decisão. Uma parte dessa minha forma de escrever é espontânea, não pude antecipar, surgiu na hora da escrita e de perceber como é que a história queria ser contada. Tenho essa ideia de que cada história se conta de maneira diferente.
Quando me sentava para escrever, foram os capítulos que meio me disseram o tom, a voz, o narrador na primeira ou terceira pessoa. Em determinado momento, ganhei mais consciência desse processo e a espontaneidade tornou-se mais controlada e coerente.
Além disso, a minha escrita é um pouco palavra puxa palavra, uma frase se relacionando com a que vem antes, quer pela sonoridade, quer pela repetição ou oposição semânticas.
Mas procurou a oralidade, o fluxo de pensamentos, os regionalismos, o longo caminho da aprendizagem da escrita, que é o de Raimundo?
Sim, sim. A parte da oralidade foi bem consciente, busquei essa dimensão. Porque o meu personagem só tinha conhecimento da língua falada. Fazia-me muito sentido que quando o texto fosse a fala ou os pensamentos do Raimundo tivesse essa proximidade com a oralidade que ele conhecia. Os desvios da norma culta, as construções das frases, o vai e vem dos pensamentos e as expressões surgiram por isso.
Inscreveu-se num ateliê de narrativa porque queria contar a história do Raimundo. O que era tão importante nesta personagem?
Ao contar a do Raimundo contei também um pouco da minha. O desejo de escrever está muito relacionada com a vontade de conversar e comunicar com as pessoas de uma forma especial. Ou seja, estas não são questões sobre as quais conversaria de maneira convencional, mas poderia fazê-lo através do texto literário.
Através da literatura é mais fácil chegar às pessoas?
Com certeza. No meu caso ainda mais, pois julgo que escrevo melhor do que falo. [risos] Sou mais de escutar. E é verdade: com um tratamento literário as histórias ganham muito mais força. Mas o livro é de ficção, não o considero uma autoficção, pois há muitas diferenças entre as vivências do Raimundo e as minhas. Por exemplo, nunca sofri as violências que ele sofreu e sempre pude estudar.
Mas quando falo das aproximações refiro especialmente ao processo de auto-aceitação da minha homossexualidade. Utilizei muito da minha própria elaboração mental, sentimental e emocional nesse processo. São caminhos diferentes de superação, de questionamento, de muita culpa, muito medo, muita vergonha. Isso eu pude dividir com Raimundo ao longo de toda a escrita.
Biografias diferentes entre autor e personagem, mas as mesmas emoções, estas mais fáceis de partilhar numa história alheia…
Sim, se eu fosse escrever uma autobiografia, primeiro acho que não conseguiria e, em segundo, seria um texto completamente diferente. Apesar de ser uma história inventada, com personagens ficcionais, tudo o que eu vivi e senti, bem como as minhas memórias – tudo isso participou na construção da narrativa.
Ao falar de si, sentiu que estava a falar também de muita gente? Estou a pensar na culpa, nos estereótipos, nas censuras sociais…
… e da violência. À medida que a história se desenvolveu, fui percebendo que podia provocar uma identificação com outras pessoas. Não só em relação às questões da sexualidade, mas também do analfabetismo que foi, na verdade, o cerne da história.
No meu trabalho de servidor público, lidei com muita gente que nem sabiam assinar o nome. Foi aí que comecei a imaginar o que as pessoas pensavam naquele instante e o que lembravam da sua vida que justificasse não saberem ler, nem escrever. Isso também poderá tocar a muitas pessoas que têm familiares nessa condição. Tenho recebido muitas reações que vão neste sentido.
Este livro tem sido apresentado como uma sucessão de exclusões (a da família, a da sua terra, a da educação, a do círculo social). Concorda com esta leitura?
Concordo, apesar de não ter tido isso tudo em mente quando parti para a escrita. Não tinha o objetivo de chocar ou panfletar. Uma puxou a outra: as exclusões surgiram da necessidade de contar a história do Raimundo. Ele era um homem que não aprendeu a ler e a escrever na idade própria, só o fez em idade muito adulta.
Tive de o localizar no Brasil, e o analfabetismo é mais frequente no ambiente de pobreza e rural. Depois veio a carta como resultado de um relacionamento homossexual interrompido, levando à exclusão pela sexualidade. Foi a contação da história que ditou tudo. O texto literário, para mim, tem de pensar no enredo e nas vivências que estão sendo contadas. Quanto maior for o tratamento literário de qualquer tema ou mensagem, mais força terão.