1. Eça no Panteão
A 15 de janeiro de 2021, a Assembleia da República deliberou “conceder honras de Panteão Nacional aos restos mortais de José Maria Eça de Queiroz”. Tinha sido a isso desafiada pela Fundação Eça de Queiroz, com o apoio da Câmara Municipal de Baião, onde fica Santa Cruz do Douro, a “Tormes” de A cidade e as serras. O grupo parlamentar do PS formalizaria subsequentemente o projeto de resolução, que seria rapidamente aprovado por unanimidade. As restrições associadas à pandemia da Covid-19 e, depois, em dezembro do mesmo ano, a dissolução do Parlamento impediram a concretização da iniciativa, a qual viria a ser assumida na legislatura subsequente, a XV, iniciada em 29 de março de 2022. Instalado o respetivo grupo de trabalho, com representantes de todos os grupos parlamentares, assegurada a indispensável coordenação entre órgãos políticos de soberania e consensualizado o programa comemorativo, pôs-se mãos à obra e a cerimónia ficou marcada para 27 de setembro de 2023.
Saber onde ficam melhor os restos mortais do escritor é questão que divide, entre queirosianos e entre leigos. Esgrimem-se bons argumentos, devidamente publicitados na imprensa, sobre os quais não é minha intenção, aqui, refletir. A querela já existia antes da deliberação da Assembleia; e não constituiu óbice a que fosse tomada com total apoio dos eleitos. Aliás, mesmo ao nível local, a oposição à trasladação havia sido mote da campanha pela reeleição do presidente da Junta de Freguesia incumbente, e o certo é que a perdeu, em outubro de 2021.
Sucede que um grupo de bisnetos do autor de Os Maias, minoritário no conjunto dos seus descendentes vivos, decidiu usar os instrumentos legais para impedir a trasladação. Escolheu fazê-lo manipulando os tempos, de modo a conseguir o máximo efeito, mesmo se derrotado na justiça. Assim, manifestou-se oficialmente contrário, em carta dirigida ao presidente da Assembleia da República, remetida apenas em julho de 2023; e apresentou uma providência cautelar a 19 de setembro. Embora perdendo, a apresentação de recurso combinada com nova dissolução da Assembleia, a 15 de janeiro de 2024, teve como consequência que ainda não foi na XV Legislatura que foi cumprida a deliberação da XIV.
É lícito pensar que Eça teria gostado de conhecer a historieta e sobre ela certamente escreveria páginas de fina ironia. Mas, para um agnóstico nestes magnos assuntos, como o autor destas linhas, que, por causa da função que então ocupava, à frente do Parlamento, se viu levado a preparar um discurso oficial, o tema interessante pareceu ser a relação entre a literatura, a política e o país.
2. Um valor literário indisputado
Era límpida a justificação apresentada na resolução da Assembleia da República. Fazia-se “em reconhecimento e homenagem pela obra literária ímpar e determinante na história da literatura portuguesa” (resolução n.º 55/2021, de 5 de fevereiro). Celebrava-se, pois, o escritor e em virtude do que escreveu.
As razões invocadas não oferecem dúvida. A Eça devemos uma inovação maior no relato do discurso, através do chamado discurso indireto livre, e outras realizações estilísticas, como o emprego certeiro da hipálage, a elegância da dupla e tripla adjetivação ou o uso sublime das figuras de ironia. Ele foi vulto cimeiro da geração realista, sem ficar preso das convenções de escola. É inigualável a arte narrativa dos romances que publicou ou deixou em forma acabada; e a reescrita obsessiva de manuscritos e provas permanece como um dos grandes exemplos da exigência de um criador consigo próprio.
Eça recorreu à literatura para a crítica social, denunciando implacavelmente as perversões associadas a práticas como o celibato do clero, a educação romântica, a beatice religiosa ou a ociosidade rentista. Engrandeceu a crónica política e de costumes. Deixou-nos personagens que mexem connosco, provocando admiração, como Afonso da Maia, ou repulsa, como o Padre Amaro ou o Primo Basílio, ou cuja densidade trágica nos perturba e emociona, como Carlos da Maia e Maria Eduarda, ou mesmo Juliana.
Legou-nos tipos literários que assentam que nem uma luva a figuras do nosso entorno, como os conselheiros Acácios da solenidade pacóvia e oca; ou os Palmas Cavalões da venalidade jornalística; ou os Pachecos cujas carreiras se baseiam em nunca se comprometerem com qualquer opinião; ou então esse tal Conde d’Abranhos, “avaro intelectual” que tem ideias, “somente conserva-as como um tesouro escondido”, e é ministro da Marinha embora odeie o mar e situe Moçambique na costa ocidental africana.
Eça abriu e antecipou muitos caminhos, desafiando-nos a imaginar o que havia e não havia dele em Fradique Mendes, ou em Ega e Carlos da Maia, ou em Jacinto e Zé Fernandes. E é impossível compreender a evolução de distintos géneros da nossa literatura, da crónica ao conto e da novela ao romance, sem o ter em conta.
3. Eça e o parlamentarismo
Se o valor literário é, pois, indisputável, já o facto de a trasladação para o Panteão decorrer de uma decisão política, colhendo unanimidade parlamentar, talvez merecesse, ao próprio Eça, pelo menos a tentação de alguma ironia. Ele orientou gerações sucessivas de leitores para uma crítica feroz do constitucionalismo oitocentista e das suas figuras políticas, as quais, ao olhar cosmopolita de Fradique, surgiam “incultas”, confinadas à “verborreia parlamentar” e à “conversa conselheiral e conselheirífera”. E mais: esses leitores habituaram-se a ver a ironia queirosiana atingir igualmente os adversários democráticos e republicanos da monarquia constitucional, também eles tolhidos pela incapacidade de arriscar e construir.
É difícil esquecer, n’A Capital!, a cena em que o orador lê interminavelmente, a meia dúzia de correligionários, o elogio histórico dos “mártires da liberdade” – e “os períodos gordos, moles, movendo-se, surdamente, como um lento rolar de odres mal cheios, constituíam uma retórica fatigante”.
Na ficção queirosiana, as câmaras legislativas do rotativismo liberal são lugares de vazio: à mercê dos governos enquanto estes não se “gastam”, ou dos humores do Paço e das “fornadas de pares”, habitadas pelos Gouvarinhos de ideias moles e frases feitas, adornos de um Estado entalado, como explica Fradique, entre funcionários e credores. No círculo estreito da “sociedade” lisboeta, tudo parece deslocado e postiço: como enumera Ega, “leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete”.
A Assembleia da República, que decidiu conceder as honras do Panteão ao autor de A cidade e as serras, tem certamente pouco a ver com a Câmara dos Deputados da segunda metade de Oitocentos, escolhida por escassos cidadãos em eleições nada competitivas e geralmente manipuladas, que basicamente serviam, não para formar um governo, mas para legitimá-lo a posteriori. E, mesmo em relação a essa Câmara, a investigação histórica tem revelado um debate político bastante mais complexo e informado do que deixa crer a caricatura queirosiana. Basta, por exemplo, ler os capítulos que lhe são dedicados na recente história do parlamento português dirigida por Pedro Tavares de Almeida.
Seria, todavia, demasiado redutor ficar-nos por considerações superficiais sobre o modo como Eça via as instituições políticas e sociais do tempo que lhe coube em sorte – e tentar adivinhar, a partir daí, o que pensaria sobre o género de canonização laica a que hoje o submetemos. A melhor homenagem que se lhe pode prestar, como escritor que é, é ler e reler as suas obras no respetivo contexto literário e moral, desfrutando do seu rasgo e inventiva, e servindo-nos abundante e livremente delas para entender o seu mundo e o nosso, nas descontinuidades e constâncias que os pontuam. E com particular atenção às reflexões sobre Portugal e os portugueses.
4. A complexidade de Eça
Para isso, temos de recusar qualquer perfil unidimensional de Eça Queiroz. E como é tentador! Umas vezes, Eça tem sido arrumado como crítico agudíssimo e certeiro quer dos atrasos multisseculares quer da modernização liberal, por isso tão influente no campo literário e intelectual subsequente quanto isolado no ambiente nacional coevo. Outras vezes, salienta-se as contradições de Eça, afinal integrado no mesmíssimo meio que satirizou, privilegiado e diletante, aristocrata por parentesco e costumes, “vencido da vida” por pose estética e desistência cívica – outra maneira de pintá-lo num só traço.
E, depois da sua morte, sempre houve quem o quisesse apresentar como o exemplo maior da suposta metamorfose daqueles jovens rebeldes de 1870, cuja maturidade faria descobrir e celebrar os valores positivos do país, a glória do passado, a boa cepa das gentes, a tranquilidade das aldeias e das serras. No limite – e as palavras são de Ega – a “alegria simples, sólida e bonacheirona da democracia” poderia acolher cada um destes retratos prontos a emoldurar do diplomata escritor.
O problema é que nenhum deles cumpriria a decisão parlamentar de valorizar a obra literária de Eça de Queiroz, “ímpar e determinante” – não as suas ideias, maneiras, escolhas e opiniões. Porque nenhum deles faz justiça à grandeza e complexidade da ficção que nos legou.
Basta revisitar a sua obra-prima. O que está em causa, do ponto de vista sociopolítico e moral, na forma como Os Maias recriam o Portugal dos anos de 1870 e 1880, não é apenas o que os outros fizeram – os que são outros para os protagonistas de uma nova geração, como Carlos da Maia e João da Ega, e estes colocam sob escrutínio impiedoso. As figuras e figurões da sociedade do rotatitivismo, os Gouvarinhos, Cavalões, Salcedes, Alencares ou Cohens, uns solenes e vazios, outros sabujos, outros obsoletos e histriónicos, outros rentistas ou especuladores. E, com eles, o conjunto dos fundadores do regime liberal, a geração de 1834 e a geração de 1851, o seu pessoal político, a elite social, o mandarinato literário, o funcionalismo, a aristocracia que gerou, os quais conseguiram derrubar o Portugal antigo, mas não lhe souberam contrapor um país diferente, educado, eficiente, moderno, desempoeirado, produtivo, alinhado com a Europa do seu tempo.
Toda essa gente está em causa. Mas não é a única. Está em causa, também e quiçá sobretudo, a nova geração, o que ela deixou de fazer, as promessas que afixou e incumpriu. A geração de Carlos e Ega, “ocidentais besuntados de literatura”, a geração pós-romântica, a geração dos filhos de proprietários terratenentes e rentistas, libertos das crendices de antanho, formados por Coimbra em Direito ou até em Medicina, cultíssimos, com o melhor gosto e o mais distinto brilho, a geração viajada, a par de todas as modas europeias, intelectuais ou mundanas, a geração que reclamou para si a modernidade e alimentou todos os sonhos, da revolução à literatura, mas afinal se revelou asténica, sem energia nem consistência, remetida ao diletantismo, mergulhada até ao pescoço no próprio ambiente social que tanto criticava, ociosa e rentista como os outros, sempre hesitando, procrastinando, desistindo.
Deste prisma, o que ressalta n’Os Maias, é uma situação de encruzilhada. Não é apenas a pequenez do liberalismo lusitano e o fracasso da modernização. É mais, muito mais do que isso.
É a permanência do Portugal caquético, caturro, fidalgo e beato, que tem horror à liberdade e à educação. É a forma que assumiu o “Portugal contemporâneo” (escalpelizado por Oliveira Martins), um país sem indústria nem trabalho, encostado ao Estado e à dívida, o país que, na síntese final de Ega, “sem originalidade, sem força, sem caráter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro – modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha”; mas “como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado – exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura”.
E é, por último, o falhanço, pessoal, político e moral, da geração que poderia ter sido transformadora, se se tivesse decidido a agir, a comprometer-se, a desinquietar-se, a fazer, nas palavras desanimadas do velho Afonso da Maia, qualquer coisa, lavoura, romance ou revolução, mas, enfim, “alguma coisa”.
5. Importa é ler Eça
Como reduzir esta densidade a fórmulas simplistas e, pior, como agora se vai fazendo, a juízos anacrónicos e condenações sumárias (porque hoje, para alguns, Eça é racista, machista e colonialista, como ontem era aristocrático, diletante e vencido e, anteontem, era radical, indecente e blasfemo)?
E, depois, é sempre de literatura que tratamos. A literatura, a boa literatura, a literatura não panfletária, como a de Eça, que quer encantar e seduzir em vez de doutrinar e converter, propõe vários caminhos, e em vários registos. N’Os Maias, Afonso da Maia, o avô de Carlos, personifica um Portugal de outrora, lembrado com nostalgia – sólido, ancorado no território e na história, mas anti-miguelista, liberal, prezando mais a ciência e a técnica do que o gosto, mais inspirado na Inglaterra laica, educada e progressiva do que no requinte de Paris.
A ilustre Casa de Ramires e As cidades e as serras aludirão a outras oportunidades de mudança e reconciliação: no passado e na exploração colonial, a primeira, a segunda na contraposição da vida natural, simples, saudável, familiar e produtiva ao luxo postiço e inútil. E o conto “A catástrofe” até prefigura um reerguer coletivo e patriótico, subsequente à humilhação da derrota e ocupação estrangeira.
Faz tanto sentido perguntar qual era o caminho do próprio José Maria Eça de Queiroz, como discutir se ele era Fradique, quanto tinha posto de si em Ega e Carlos da Maia, se era mais Jacinto ou Zé Fernandes. Tudo isso seria tão deslocado e absurdo como é deslocado e absurdo disputarmos a quem ele pertence, quem é dono dele, da sua memória e dos seus restos.
Eça pertence a si mesmo, e é assim que nos obriga a redescobri-lo a cada leitura. Eça pertence a cada leitor e leitora, que em cada leitura o apropria e recria. Eça pertence à literatura portuguesa, que só é o que é hoje porque ele existiu.
Por isso é que, com maior ou menor oportunidade, maior ou menor sinceridade, com mais ou menos Panteão, o homenageamos. De várias e distintas maneiras, todas limitadas, polémicas, justificadas. Mas destinando-se as que contam, as que não são acacianas, a este efeito simples, o maior de todos: que Eça seja lido. J
(As citações de Eça provêm de Os Maias, A correspondência de Fradique Mendes, A Capital! e O Conde d’Abranhos).