Tive o privilégio de entrar no reduto essencial da sua roda de amigos – primeiro como aluno na Faculdade de Letras de Lisboa, depois seu monitor convidado em Literatura Francesa e, mais tarde, já no final dos anos 90, na UAL, como professor-assistente de uma disciplina, a Escrita Criativa. Cada um de nós ensinava-a à sua medida, ainda que sob a superior orientação metodológica do mestre. Éramos quatro escritores (ele, Luís Carmelo, Jacinto Lucas Pires e eu) unidos por um fio de paixão àquilo que melhor nos explicava: as sempre tão belas e amadas palavras, pela fruição da linguagem e pelo nosso amor à Literatura. De resto, é bem-sabido que Urbano Tavares Rodrigues abriu sempre portas e janelas aos novos escritores. Incentivou, insistiu, valorizou o positivo e o potencial de cada um. Estou certo de que se orgulhou tantos dos seus alunos e seus discípulos, como estes hoje se orgulharão de o terem tido como professor e mestre.
Mas há o outro Urbano, este de que vos falo. O ficcionista da novela, do conto e do romance, autor de cerca de uma centena de títulos, entre ficções, crónicas, críticas e ensaios literários (com uma tese académica sobre M. Teixeira Gomes), por entre inúmeros outros textos, vindos a público na imprensa cultural. Foi pelo conjunto dessas criações que admirei a sua versatilidade temática e estética, desde as narrativas de cunho citadino e social dos seus pequenos livros, até à paixão alentejana, acusadora e combativa, ou mesmo “política” dos contos com que amiúde fechava cada um desses livros de narrativas. Em 1977, reuniu mesmo em volume (a que chamou “Estórias Alentejanas”) o conjunto dessas ficções temáticas, onde encontramos exemplos da sua melhor escrita: narrativas poéticas e dilemáticas, de testemunho ou de solidariedade para com um povo oprimido e sofredor como nenhum outro pelo sistema político e social do Salazarismo. Tempos do latifúndio e da burguesia agrária. O mesmo se diga do que julgo ser o melhor romance que nos deixou, também de temática alentejana, Bastardos do Sol (1959). Nos anos 80, ressurgiu numa coleção de “obras-primas do século XX”, e tive eu a sorte de o estudar e prefaciar. Escreveu histórias aguerridas e profundamente portuguesas. Lê-lo foi não só uma descoberta da minha juventude, mas a fruição de um modo e de uma mestria literária.
Viu livros seus serem apreendidos pela polícia política, outros traduzidos em França e nos países socialistas, e alguns também editados no Brasil. Por três vezes, foi o nosso Urbano parar aos calabouços da Pide, em resultado da oposição aos censores e aos poderes discricionários da Ditadura, e participando na vida política de então, até como candidato a deputado em tempo de eleições apenas rituais, porque falsamente livres. Não hesito em apontá-lo como modelo de um intelectual “de causas”, de escritor algo indeciso entre o neorrealismo militante de então e o existencialismo. Foi um autor de êxitos assinaláveis, antes e logo após o 25 de abril. Depois … não sei que diga. Perdeu público, os seus livros foram sendo arredados da tribuna literária, depois das livrarias, das feiras e do Plano Nacional de Leitura para o ensino. É uma tristeza, um enigma, uma espécie de nova clandestinidade do nome e da pessoa a quem tanta gente quis, devedores que fomos e somos deste homem-escritor-amigo de quase tudo nas nossas vidas, na memória dele e numa alma que agora parece vagar por lugares esconsos, não sei se a caminho do apagamento público do nome ou se mesmo da sua dolorosa inexistência quotidiana. Quem lê, quem publica, quem brada hoje pelo nome e pela obra de Urbano Tavares Rodrigues? Sei que houve em tempos um plano editorial para os seus livros, de que se publicaram dois ou três volumes. À morte física, sucedeu esta outra, a segunda morte dele e do seu público de antigamente, restando-nos a nós apelar a que não seja a definitiva e lastimável morte do escritor no país em que viveu e que tanto amou.