Livro aberto
Em Matéria Escrita, Gabriel Orozco diz que “um livro fechado não é arte”. De facto, é a leitura que cria o livro e o constrói a partir dos signos de tinta impressos em papel (ou mais vulgarmente em papel). Podemos interpretar uma pintura ou uma música durante ou após o processo de fruição, que é um mecanismo fundamental da arte (a abertura à interpretação), mas o objeto artístico é-nos oferecido sensivelmente e de uma forma completa na sua existência física. O livro não. Sem leitura não existe. Aliás, com a notação musical temos um fenómeno semelhante: a partitura só é música quando é lida e, preferencialmente, executada.
Massimo Recalcati, em A Libro Aperto, escreveu o seguinte: “Um livro fechado é, na verdade, um contra-senso: não é um livro. Como o mar, o livro é uma imagem extraordinária do “aberto”. Abre o mundo em vez de o fechar. Um livro é um mar e não um muro.”
Teoria da cesta
A caça tem uma narrativa que culmina com a morte — bem como a guerra —, resumida em sangue e morte e bravura e crueldade. É fácil transformar uma caçada numa épica história de heróis e grandiosos feitos. A recolha de bagas, folhas, frutos e raízes não. O herói regressa suado e sujo com um mamute às costas ou com uma baleia-branca debaixo do braço, enquanto o recoletor passou o dia a apanhar umas bagas, umas raízes, umas folhas, nada de muito hollywoodesco ou aparentemente cativante, olha, apanhei mais um morango silvestre, e mais outro e mais outro e mais outro. E, no entanto, Ursula k. Le Guin, ao refletir sobre isso, desenvolveu uma teoria literária, a teoria da cesta, uma abordagem alternativa à narrativa convencional do herói e da sua jornada (jornada essa que se baseia sobretudo na ideia de um protagonista individual, o tal herói, sendo este secundado por alguns amigos que servem apenas para assegurar o sucesso do primeiro na sua demanda épica). Na teoria da cesta valoriza-se a cooperação e a contribuição de vários personagens para a narrativa, observam-se as várias interações sociais e comunitárias, as conversas, os pequenos episódios, formando uma teia, um tecido, mais do que uma seta. A cesta é rizomática, não é uma arma que se dispara. Enquanto o herói destrói, se for preciso, meio mundo para assegurar a vitória e uma princesa ou outra, arrasando pelo caminho uma Tróia qualquer, numa trama cheia de relações hierarquizadas, a teoria da cesta, em contrapartida, centra-se numa narrativa de sustentação, onde a cesta é vista como um símbolo da coleta e partilha de recursos para o bem da comunidade, em oposição à conquista individual. Na teoria da cesta não se matam dragões: enfatiza-se uma relação mais gentil ou harmoniosa com a natureza e seus recursos, não havendo muito sangue a correr. E, contudo, este contexto não é isento de tensão, nem tudo é um mar de bagas quando se vive a recolhê-las. A diferença é que há menos espalhafato, os seus eixos são mais discretos, por vezes insidiosos: são os venenos de plantas e cogumelos, de sapos ou escorpiões, são as picadas mortais de insetos, são as doenças, e a contraparte psicológica de tudo isto, a intriga, a mentira, o ciúme, o insulto, a traição, a solidão. O herói também poderá relacionar-se com isto, mas resolve os problemas de forma diferente, por exemplo, prendendo Heitor ao carro de combate, arrastando-o pelo campo de batalha.
Como Darwin tratava os livros e a poesia
Darwin, quando se encontrava perante um calhamaço, não tinha qualquer pejo em rasgá-lo pela lombada, para que fosse manejável, isto é, dividi-lo em dois tomos mais finos, menos pesados. Alem disso, também era capaz de arrancar secções que não lhe interessavam e deitá-las fora. Eu nunca fui capaz de magoar um livro dessa maneira, nem sequer sublinhar, que já me parece uma ofensa suficientemente grande, apesar de ser sensível ao desapego pelo objeto material que Darwin evidenciava.
Há ainda um outro dado mais ou menos inesperado no que concerne aos livros e à leitura. Na sua autobiografia, escrevendo sobre a sua relação com a poesia, Darwin confessou: “Não aguento ler uma linha de poesia. Tentei recentemente ler Shakespeare e achei aquilo tão insuportavelmente aborrecido que me agoniou.”