Nascida em Caracas, em 1982, e hoje a viver em Espanha, Karina Sainz Borgo é uma das mais destacadas escritoras venezuelanas da atualidade. Os seus romances dão a conhecer a dimensão humana de um país e região divididos, muitas vezes violentos, no qual as migrações são uma constante. É uma literatura atenta ao sofrimento e à dor dos outros. Depois de Cai a Noite em Caracas, a sua estreia no romance, a Alfaguara publicou, entre nós, O Terceiro País, uma narrativa marcada pela fronteira. No Festival Utopia, Karia Sainz Borgo participa numa conversa sobre “A Geografia Sentimental”, no dia 12, às 17, na Capela Imaculada.
Jornal de Letras: Qual a melhor (ou pior) definição de fronteira?
Karina Sainz Borgo: A fronteira é um lugar incerto, onde todos estão de passagem, à procura de alguma coisa, a negociar, a vender. É um purgatório, um limbo, o ponto intermédio para aqueles que querem fugir ou entrar. A particularidade do meu romance O Terceiro País é o território onde se desenvolve: um lugar que separa a serra oriental da ocidental; os bons dos maus; os vivos dos mortos ou a verdade da fantasia. Tudo se passa nesse território inexato entre a vida e a morte, mas regido pelas leis da fronteira, isto é, a lei do mais forte.
Será a fronteira inevitavelmente um foco de conflitos?
Está na sua natureza. É o limite entre soberanias e países. As fronteiras são sensíveis a qualquer movimento humano. É a primeira coisa a fechar quando há uma guerra, uma epidemia, uma invasão, um conflito. Basta olhar para Gaza para compreender a dimensão política que um território adquire quando faz fronteira com outro.
Pela sua identidade e pelas histórias que encerra, é uma paisagem que exige literatura?
O século XXI é marcado pela migração: da Síria à América Central, do México ao Arizona, da Venezuela ao sul, via Lampedusa, Síria, Gaza e os botes que desembarcam nas Ilhas Canárias vindas de Marrocos… Sempre que oiço relatos sobre estas migrações, tenho a sensação de contemplar uma imagem antiga, algo tão duradouro como uma tragédia ou uma dor: o sofrimento dos outros, a única notícia que nos chega de um mundo que por vezes parece distante, estranho e até distópico.
Como chegou à fronteira do romance O Terceiro País?
Em 2019, pouco antes da pandemia, viajei até à fronteira entre a Colômbia e a Venezuela para me encontrar com uma mulher que enterrava mortos por caridade. Estive alguns dias com ela e senti a necessidade e o desespero de quem atravessava a fronteira e vagueava em busca de uma forma de viver ou de seguir para outro país. Insisto: tive a sensação de assistir a uma tragédia (de exílio e morte) antiga e universal que acompanha o ser humano desde sempre.
Disse numa entrevista que só através da literatura poderia contar o que viu…
Tentei criar uma alegoria, não uma reportagem. Se o tivesse limitado a um trabalho jornalístico, seria uma mera tessela de um mosaico maior. O jornalismo, quando é rigoroso e sistemático, é obrigado a fornecer dados, respostas. Um romance é escrito contra nós próprios e contra as próprias personagens. É o território das perguntas. Elas estão lá para nos desconcertar. Por isso segui a via do romance, a sua estrutura dá-me liberdade para alargar o meu olhar.
O romance tem duas grandes protagonistas, duas mulheres extraordinárias. Também se inspirou em pessoas que passaram pelas mesmas vicissitudes que as suas personagens?
Ao estilo de um western, O Terceiro País narra a luta de duas mulheres contra uma paisagem hostil e violenta, em que a única lei é ditada por quem anda armado. Também aí a bebida, a droga e o tráfico de seres humanos marcam tudo. Mas elas não se deixa intimidar por quem tenta livrar-se delas: nem Visitación Salazar, que terá de lutar pelo terreno onde instalou o seu cemitério, nem Angustias Romero, que tudo fará para enterrar os seus filhos. O Terceiro País é uma história sobre compaixão e piedade, sobre o sofrimento de quem foge e o desespero de quem escapa, mas também sobre amizade e coragem. Visitación Salazar e Angustias Romero lutam pela justiça nessa fronteira dentro de uma outra fronteira onde se cruzam os vivos e os mortos, a lenda e a realidade, o bem e o mal. São Antígonas num território manchado de poeira e medo que não é o seu.
Este é um romance marcado pela violência. É impossível falar da Venezuela e da Colômbia sem a incluir?
É impossível narrar o mundo sem falar da violência que o atravessa. Mesmo dentro de nós há uma raiva, um desprezo, uma necessidade de sobreviver. Mas vivemos em sociedades onde a justiça funciona e a impunidade não impera. Em ambientes onde não há lei nem justiça, a violência espalha-se, inunda tudo, preenche tudo, faz parte da paisagem e da natureza dos que a habitam.
Lemos a primeira frase do romance e pensamos imediatamente em Pedro Páramo. E ao longo do romance outros livros ressoam (alguns são mencionados na epígrafe). Criar este romance foi dialogar com grandes clássicos e temas intemporais?
Sim, Angustias e Visitación vão forjar uma amizade movendo-se num território imaginário que bebe na Comala de Juan Rulfo e agita as fontes da Antígona de Sófocles (e também das de José Bergamín e María Zambrano), numa estrutura de viagem alegórica. Pensamos que habitamos um mundo inédito, quando na realidade vivemos numa tradição emprestada. De Ulisses, Enéias ou Alonso Quijano a Emma Bovary, Hans Castorp ou ao jovem capitão de A Linha de Sombra. Todos narram uma viagem. E eu também quero narrar essa longa e antiga viagem do ser humano.
Tanto este romance como o anterior têm um carácter político, não de denúncia, mas de exposição de histórias pouco faladas. É intencional ou um bom dano colateral das suas narrativas?
Não consigo viver de costas voltadas para a minha dor, para o que me desafia. O desenraizamento é um tema que me persegue. Sinto uma vontade muito forte de conhecer e contar histórias de perda, violência e desamparo. Os romances não corrigem a realidade. Não exemplificam. Não restauram democracias. Nunca o fizeram. O que me interessa são as viagens, e é disso que trata O Terceiro País, a longa viagem de uma mulher que quer enterrar os seus filhos. Apenas isso: um enterro digno para os seus filhos. A forma como uma sociedade mata diz muito sobre ela, mas diz mais ainda a maneira como lida com os sem vida ou moribundos. À primeira morte, junta-se uma segunda: a indignidade do cadáver. Não enterrar os caídos, passeá-los e arrastá-los como Aquiles fez com Heitor. Na sua Poética, Aristóteles afirma que a tragédia contém a catarse, o poder de redimir e purificar o espetador. É em torno da tragédia que se desencadeia a reflexão sobre o processo de formação da cidade e da democracia. A tragédia antiga não era apenas um espetáculo como o entendemos hoje, mas antes um ritual coletivo da Pólis, uma espécie de cerimónia cívica. Reler e revisitar a tragédia é um gesto político como nenhum outro. No entanto, quando assistimos a uma tragédia sem a convenção literária, ela acaba por toldar a nossa razão e anular a nossa capacidade de fazer algo com ela.