No início dos anos 80, era jornalista e gostava de o ser. Assinava uma crónica, escrevia artigos sobre temas atuais, entrevistava quem me parecia ter coisas novas para dizer.
A tiragem de O Jornal ultrapassava mesmo em certos períodos a do Expresso e por isso tinha dezenas de milhares de leitores. Como também ia aparecendo por vezes na televisão, era frequente ver-me a ser lido nos bancos de jardins e autocarros, solicitado para divulgar um livro ou uma peça de teatro ou até para resolver algum urgente problema nacional de que nada sabia.
Tinha amigos na redação, e alcançava o topo da carreira. Gostava de escrever, mas apreciava a acção, e nada me atraía menos do que a criação de uma empresa, mesmo que de livros, com a inerente sedentarização.
No entanto, em dezembro de 1982, fundara uma pequena editora, a Relógio D’Água, com dois colegas de redação, que ia acumulando prejuízos, num período de grave crise económica. É certo que essas dificuldades iniciais eram um desafio. E é também verdade que, em comparação com a dos jornalistas, as vidas dos escritores me pareciam mais discretas e criativas, pois inventam novas realidades através da ficção em vez de se limitarem a comentar a realidade existente.
Conhecia então Hélia Correia, Rui Nunes e José Saramago, sobre cujos livros escrevera, e visitara José Gil no Sul da Córsega. Em casa de José Cardoso Pires, descobri que o seu escritório era um gabinete de curiosidades literárias, onde se podia encontrar velhos números da revista Almanaque, uma fotografia quase solene de Hemingway, a edição ilustrada da Minotauro da Divina Comédia, As I Lay Dying, de Faulkner, e uma 1ª edição de Barranco de Cegos, de Redol.
É claro que poderia ter feito como Rogério Rodrigues e Fernando Dacosta, que decidiram voltar a dedicar-se em exclusivo ao jornalismo.
Este texto sobre a criação da Relógio D’Água é uma tentativa de compreender a decisão que me levou a deixar o jornalismo. Que terá acontecido na minha vida, que ofensa terei feito aos deuses para merecer ser editor num país onde tão pouco se lê?
Nasci em Cabeceiras de Basto, aonde a minha mãe ia propositadamente ter os filhos. Ela era filha do barão de Basto, personagem ainda mais singular do que o primo, o barão que surge na novela do mesmo nome de Branquinho da Fonseca.
O meu pai era filho de um advogado. Dadas as diferenças sociais, o namoro foi contrariado, o que provocou um desenlace camiliano, um rapto consentido e uma perseguição policial.
A família acabou por se fixar em Braga, onde frequentei o Colégio S. Geraldo e depois o Liceu Sá de Miranda. Fui um leitor precoce e indisciplinado. Poucos livros havia em nossa casa, além de obras sobre a II Guerra Mundial, alguns romances de Camilo, Ferreira de Castro, Júlio Dinis e Victor Hugo e folhetins de amor. Mas tive um tio, Felisberto Ferreirinha, escritor, que viveu em Angola.
Os meus pais herdaram-lhe as estatuetas africanas e a biblioteca que incluía as edições de Anna Karenina dos Estúdios Cor e de Guerra e Paz da Inquérito. Tive ainda acesso à coleção da Seara Nova, de que ele foi colaborador, a livros sobre os bantus e a enciclopédias, onde muitas vezes me perdi nos monótonos dias de Braga em que filas negras de seminaristas desciam a Rua de Sta. Margarida e aos domingos mulheres entoavam ave-marias a caminho do Sameiro.
Aos nove anos, tive um primeiro e confuso encontro com Natasha e o príncipe André. Mas as minhas leituras prediletas eram as aventuras de Blake e Mortimer, de Mandrake ou de Flash Gordon, que saíam no Cavaleiro Andante. Devorava os livros de Salgari, ignorando que ele nunca estivera nas florestas de Mompracem e que imaginava as tempestades tropicais martelando as teclas de um piano. Nenhum episódio me voltaria a comover tanto como a expulsão de Sandokan, o Tigre da Malásia, pelos canhoeiros ingleses da sua ilha do Mompracem.
Como os meus irmãos mais velhos frequentavam já a universidade, deram-me a conhecer Camus, Sartre (e o debate entre eles), Garaudy e Fernando Namora. Na biblioteca de Braga, descobri Maugham e Hemingway, e o cinismo aforístico de Pitigrilli.
Tive uma adolescência difícil, dado o autoritarismo do meu pai, que a herança da minha mãe tornara um grande proprietário rural e urbano. De qualquer modo, Braga era uma cidade sem mar, nem rio, onde, no início dos anos 60, os movimentos das raparigas eram rigorosamente vigiados e era impossível uma adolescência feliz.
No Liceu Sá de Miranda, uma professora que parecia acabada de chegar da Grécia antiga fez-me interessar pela filosofia e Américo Barbosa pela poesia de Camões.
O paraíso eram as férias grandes, quando depois de um mês na Póvoa de Varzim, íamos para a quinta de Souto Longal em Cabeceiras, que descia em socalcos até ao rio. À hora das refeições éramos chamados por um sino. No final das férias, estando os meus pais a viajar, já seríamos uns completos selvagens, não fossem as sofisticadas primas lisboetas que traziam livros acabados de sair e discos do Paul Anka, Elvis Presley e Louis Armstrong.
Politicamente, o meu pai era conservador, amigo de vários dirigentes da União Nacional, mas, em 1958, apoiou a candidatura presidencial de Humberto Delgado. A nossa casa de Braga encheu-se de panfletos contra Salazar e foi esse o início da minha politização.
Como os meus irmãos mais velhos já ocupavam os outros “cursos sérios”, ou seja, Direito e Medicina, optei pela alínea F, com intenção de seguir Engenharia.
A minha ida para a Universidade do Porto coincidiu com a rutura com o meu pai. Como tinha sido bom aluno em Desenho, Física e Matemática, vivi de explicações e, quando fiz algumas cadeiras de Engenharia, dei também aulas em colégios. E foi no movimento estudantil que despertei para a ação política organizada contra a ditadura de Salazar.
Não me interessava o Partido Comunista, pois achava que a URSS era dominada por uma burocracia que exercia o poder contra os trabalhadores, com a agravante de o fazer em seu nome. O maoismo parecia-me uma pueril simplificação de Marx. Liguei-me a um grupo de influência trotskista, tendo como companheiros o poeta Manuel Resende, que citava Paul Éluard pelos cafés, o hoje cineasta João Botelho, que lia Lévi-Strauss e jogava futebol, e o filósofo Francisco Sardo, que nos falava de Espinosa, Kant e Hegel.
Politicamente, mantive-me sempre um heterodoxo. Além de Trotsky, apreciava Rosa Luxemburgo e Gramsci, não apenas pelas suas ideias, mas por serem excelentes escritores que partilharam um fim trágico.
Ingressei no Teatro Universitário do Porto, onde fui ator na peça Ana Kleiber, de Alfonso Sastre, que estreou no Teatro Nacional São João. Li Beckett e Brecht — este foi-me “revelado” pela peça O Círculo de Giz Caucasiano que o João Lourenço levou em digressão ao Porto no Grupo 4.
Participei nas concentrações do 1.º de Maio nos Aliados e nas manifestações estudantis contra a Guerra Colonial no final dos anos 60 e início dos 70, com o seu inevitável cortejo de cargas policiais.
Em 1972, fui suspenso do ensino superior, sob a acusação de ser um dos dirigentes da ocupação da Faculdade de Ciências, onde, para impedir a invasão da polícia, ameaçámos destruir o computador que era o orgulho da universidade, pois ocupava uma sala inteira e fora inaugurado por Américo Tomás.
Pouco depois, formou-se uma organização em Lisboa e no Porto que viria a ligar-se à IV Internacional. No Porto, intervínhamos não apenas no meio estudantil, como sucedia em Lisboa, mas também nos bairros operários. No início de 1973, fui preso quando atravessava a “Praça dos Leões”. Consegui fugir, mas tive de passar à clandestinidade, que se prolongou até abril de 1974.
Já em Lisboa, fui um dos dirigentes, com Francisco Louçã e Cabral Fernandes, que participou na legalização da LCI, de que me distanciei nos anos seguintes, enquanto ela se transformava em PSR e se unia à UDP e ao grupo de Miguel Portas para formar o Bloco de Esquerda. Nas minhas estantes, Stendhal, Pessoa, Tolstoi, Rimbaud, Alexandre O’Neill passaram a ocupar lugares antes reservados a Marx, Trotsky ou Karl Korsch.
Pensava já em concluir um curso que nunca me entusiasmara, quando, através de José Cardoso Pires, me surgiu a oportunidade de colaborar na revista espanhola Triunfo e, depois, de ingressar no semanário Extra, onde colaboravam José Saramago e Eduardo Lourenço. Era fascinante a sensação de ver o que escrevíamos multiplicado em poucos dias por milhares de exemplares.
Um ano depois estava no Diário de Lisboa, que tinha como diretor-adjunto o historiador Fernando Piteira Santos. O chefe de redação era Fernando Assis Pacheco. Nas secretárias próximas, o exuberante Luís de Sttau Monteiro parecia estar sempre de partida para Paris, e a muito discreta Maria Judite de Carvalho desperdiçava talento traduzindo artigos de Le Monde.
Em 1980, aceitei um convite para o semanário O Jornal, para onde entretanto Assis Pacheco se mudara. Colaborei também no Jornal de Letras de José Carlos Vasconcelos (que acumulava com a direção de O Jornal) e que teve Assis Pacheco e António Mega Ferreira a dirigir a redação em dois dos seus períodos mais inovadores.
A minha imaginação jornalística foi-se esgotando ao longo de alguns anos de entrevistas, reportagens, artigos e, a dada altura, de uma crónica semanal. Fiz ainda uma tentativa improvisada de jornalismo em zonas de conflito, viajando em reportagem para o Kosovo, então em revolta contra os sérvios, e para a Síria, envolvida na guerra civil libanesa.
Num caso, acabei com a reportagem feita mas as fotos apreendidas; no outro, retido no aeroporto de Alepo, onde se desconhecia a existência de Portugal (de facto, não figurava nos mapas militares que me mostraram), impedido de chegar a Beirute e com ordem de expulsão, quando aguardava uma entrevista com o ministro dos Negócios Estrangeiros sírio.
Em 1982, resolvi juntar-me a dois colegas, Rogério Rodrigues e Fernando Dacosta, para fundar uma editora. As minhas referências eram a Hogarth Press de Virginia e Leonard Woolf, a Adelphi e a Faber & Faber, a Portugália e a Ulisseia; a Afrodite de Ribeiro de Mello e a & etc de Vítor Silva Tavares eram exemplos pelo seu grafismo inovador.
Faltava-nos uma ideia clara do espaço que iríamos ocupar, o que é essencial para uma editora. Mas sobravam-nos pretensões. Além de publicar os nossos originais, a Relógio D’Água iria subverter a vida cultural portuguesa. Não é verdade que os grandes autores portugueses começaram em pequenas editoras (Pessoa na Monteiro & Co., Lobo Antunes na Vega, Saramago na Moraes, Agustina na Guimarães)?
Juntaram-se a nós Fernando Paulouro, que dirigia o Jornal do Fundão, onde os livros seriam impressos, um gráfico e um gestor. Começámos com O Número dos Vivos, de Hélia Correia, Quem da Pátria ‘Sai a Si Mesmo Escapa?’, de Rui Nunes, A Casa Suspensa, de Maria Ondina Braga, Adeus, Princesa, de Clara Pinto Correia, O Spleen de Paris, de Baudelaire, os Poemas de Hölderlin, O Amor Incerto, de Elisabeth Badinter e O Livro por Vir, de Blanchot, obras de Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Lillian Hellman, Thomas Bernhard e Marguerite Yourcenar. A partir de 1983, as capas foram feitas por João Botelho e Luís Miguel Castro, e algum tempo depois por Jorge Colombo.
Passados dois anos de dificuldades, a equipa inicial dispersou. Tinha agora uma ideia mais nítida do editor que desejava ser. Queria que o catálogo da Relógio D’Água pudesse ser a expressão individual dos meus gostos e de quem viesse a continuar o projeto, o que significava que não poderia editar mais de dez livros por mês (só assim poderia manter com os escritores relações de simpatia e até de amizade e acompanhar o percurso das suas obras).
E não queria ser apenas o editor de livros que os leitores esperam, seguindo as tendências de mercado, conhecidas pelos tops de vendas ou empresas de marketing. Pretendia entusiasmá-los com o que me parecia mais criativo e autêntico em literatura e ensaio. Sabia que qualquer editor se pode enganar, que só a ignorância do papel do acaso nos faz pensar que merecemos todos os êxitos, que um escritor que parecia uma promessa pode não confirmar as expectativas, e que às épocas de criação fecunda se sucedem as estéreis.
Tive de vender a quinta onde nasci a um irmão para pagar as dívidas e relançar a editora. Ao fazê-lo, sabia que não poderia falhar, que a Relógio D’Água teria de ser o projeto da minha vida.
A Relógio D’Água tem hoje no seu catálogo mais de dois mil títulos, nenhum deles escolhido apenas a pensar nas vendas. Inclui a maior parte dos clássicos ingleses, russos, franceses, alemães e até alguns latinos; uma coleção de ficção traduzida com centenas de romances e contos; uma outra de poesia reconhecida pela qualidade; e ensaios que foram marcantes no pensamento.
Entre os autores portugueses contemporâneos, além dos já referidos, estão Agustina, Cardoso Pires, José Gil, António Barreto, Maria Filomena Mónica, e, entre os mais novos, Gonçalo M. Tavares, Ana Teresa Pereira, Ana Margarida de Carvalho, Djaimilia Pereira de Almeida, Alexandre Andrade, H. G. Cancela e Norberto Morais.
E, no entanto, o projeto permanece inacabado, pois, tal como a água que transportamos nas mãos em concha, várias intenções foram-se escoando entre os dedos da sua realização e aguardam um novo impulso. J