Passaram no dia 2 de fevereiro dez anos sobre o desaparecimento de uma notabilíssima romancista portuguesa: Rosa Lobato de Faria (RLF). Falecida aos 77 anos, encetara a sua prolífica atividade de romancista já com 63 anos. Não perderia pela demora: em 14 anos de esforçado investimento na ficção longa, legou-nos 13 romances, dos quais, o último – Vento Suão – ficou póstumo e inacabado, mas muito próximo de concluído. Romance de Cordélia (1998), O Prenúncio das Águas (1999), As Esquinas do Tempo (2008) e Vento Suão (2011) são títulos impressivos que poderíamos, entre vários outros, citar.
Como dissemos, começou tarde a sua atividade criativa, embora tenha declarado, numa entrevista concedida a Maria Teresa Horta: “Gosto loucamente de escrever. Passo a vida a escrever poesia.” Antes de se dedicar, com admirável intensidade e disciplina, ao romance, RLF dispersara muito do seu talento e facilidade de escrita por uma grande variedade de pelouros: guionista de novelas e séries, atriz de cinema e televisão, letrista de canções, poetisa, contista (de literatura infantil e não só). Foi também, além disto, uma singular e notável cronista.
Comparada esta primeira fase da sua vida à sua posterior entrega a uma poderosa série de romances empolgantes, podem parecer anos e exercícios de puro desperdício, por maior que tenha sido o talento investido nesse sector mais ligeiro e… mundano. Mas foi, talvez, além de um justificado ganha-pão, um modo de afeiçoar a sua mão de escritora. Por outro lado, não devemos esquecer grandes escritores (Proust, Scott Fitzgerald) que desperdiçaram uma parte importante das suas vidas, em atividades mundanas ou orgias, reservando, no entanto, outra parte a um investimento sério e concentrado no seu “canto profundo”. Seja como for, estou certo de que será a romancista RLF, mais do que a poetisa, a atriz, a letrista ou a guionista, que assegurará um lugar assinalável na literatura portuguesa e na memória dos seus mais exigentes admiradores: o de uma romancista notável, forte e empolgante, dotada de uma invulgar capacidade de efabulação. Foi neste género literário – o romance – que investiu uma vasta, profunda e bem meditada experiência de vida.
Como poucos ficcionistas portugueses – alguns injustamente esquecidos, como, por exemplo, Francisco Costa, autor de belíssimos e bem arquitetados romances, tais os que compõem a admirável trilogia de A Garça e a Serpente (!943), Primavera Cinzenta (1944) e Revolta de Sangue (1946) ou ainda Cárcere Invisível (1949), ou o marginalizado, por inaceitáveis razões políticas, Joaquim Paço d’Arcos, com a sua extensa, bem documentada, muito bem arquitetada e profusamente povoada Crónica da Vida Lisboeta, sem falar de notáveis contos e (atrevidas) novelas, a pedirem merecida reedição – , como outros não tão esquecidos mas também não demasiado lembrados grandes contadores de histórias – José Rodrigues Miguéis, José Régio, Manuel da Fonseca, José Marmelo e Silva, Branquinho da Fonseca, Domingos Monteiro, Cardoso Pires ou Maria Judite de Carvalho – como estes, repito, RLF, além de nos ter dado obras de ficção habitadas por fortes personagens mergulhados num universo romanesco altamente enfeitiçante e sonambulizante, revelou-se também uma extraordinária e aliciante congeminadora de histórias e intrigas de alto gabarito.
A este respeito, gostaríamos de observar que alguns “snobs” da nossa praça literária costumam fazer gala em dizer que não gostam de ficções “com história dentro”, dando a entender que a “história” é uma componente descartável da ficção, boa só para uso de paladares pouco sofisticados. Assim banindo da cidade literária grandes contadores de histórias como Balzac, Stendhal, Dickens, Maupassant, Henry James, Karen Blixen, Camilo, George Eliot, Somerset Maugham, Graham Greene, Simenon, entre muitos autores que nem vale a pena citar.
No entanto, gostaria de aqui lembrar, com algum apetecível acinte, o que, a este respeito, observou o filósofo Ortega y Gasset, no seu livro genial, Ideas sobre la novela.
Ortega, no seu inconfundível estilo cheio de luz, que faz dele tão grande escritor como pensador, propõe-nos um curioso paralelo entre um romance e um colar de pérolas. No romance, segundo ele, a “história” desempenharia o papel do fio, no colar de pérolas. O fio não será a parte mais valiosa do colar, visto que o mais precioso são, sem dúvida, as pérolas. Porém, sem o fio, não haveria colar.
Também, em muitos romances, o mais valioso talvez não seja a história, mas sim os personagens, a atmosfera, o tom da narrativa. Mas é a história que permite ao romance que este se mova, que progrida e que, por meio dela, os personagens se revelem e os conflitos se resolvam. Em alguns casos, a história pode ser relativamente ténue, mas é necessária. Ortega chamava aos romances sem o fio da história “romances paralíticos”, porque eles não se moviam e nada avançava. Acontece que, nos romances de RLF, a “história” nunca é descartável, pelo contrário, é forte, segura e empolgante. O fio dos seus romances é quase tão importante como as “pérolas” que dele fazem parte. Mais: as suas histórias não temem, por vezes, roçar quase indiscretamente, as seduções do “roman noir” ou do policial.
E por que haviam de temer? O Rei Édipo é um soberbo exercício de “suspense” e Malraux afirmava com razão que certos romances de Faulkner eram um misto de tragédia grega e de romance policial. E a magnífica saga realista, Les Thibault, de Roger Martin du Gard, tem um inesquecível começo que deve não pouco ao romance policial, com todos os ingredientes do género. RLF faz nem mais nem menos do que seguir as recomendações de Henry James, o qual aconselhava o romancista a ter, com o leitor, esta essencial obrigação: ser sempre interessante. Como boa entertainer que fora, antes de se ter tornado romancista, trouxe para o romance, com grande expertise, muitos dos venenos com que se compõe a receita usada para se iscar o interesse do leitor. Os grandes romances policiais de Raymond Chandler ou de Simenon são simplesmente notabilíssimos romances tout-court.
Nada disto impediu nunca Rosa Lobato de Faria de analisar com singular penetração os recantos mais profundos das personagens que povoam e animam o seu universo romanesco. O grande romancista e dramaturgo americano, Thornton Wilder, pouco antes de morrer entregou a um amigo um papel, como espécie de testamento (cito este episódio de memória). Nesse papel dizia, em suma, que se um romancista se visse, em vida, biografado, ao ler essa biografia, diria, dando um suspiro de alívio: “Posso morrer descansado. Levo comigo o meu segredo”. Assim sugerindo que o biógrafo não conseguira descortinar o mais profundo da sua personalidade.
Mas se uma das personagens do romance Guerra e Paz, por exemplo, a inesquecível Natasha, saltasse do livro para a vida e lesse o romance de Tolstoi, diria de si para si, surpreendida: “Como é que ele sabia?” ou seja: Como é que ele me conhecia tão bem? O romancista conseguia fazer o que ao biógrafo estava vedado, por mais documentação que reunisse.
Quero com isto sugerir que, se as criaturas que congeminou para as suas ficções saíssem dos livros para a realidade cá de fora e fossem ler os livros de que são personagens, teriam de certeza perguntado: “Como é que ela sabia?” Eis o maior cumprimento que se pode fazer a esta inconfundível ficcionista.
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