“Qualquer poder humano pode sofrer resistência e ser mudado por seres humanos”. Após proferir esta frase, enquanto recebia a medalha que a National Book Foundation decidiu entregar-lhe devido ao excecional contributo para as letras americanas, Ursula K. Le Guin apressou-se a acrescentar: “A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.
O ano era 2014. O dia, 20 de novembro. Uma manhã de outono a cinco meses e muitos quilómetros de distância da noite de junho durante a qual três adolescentes israelitas haviam sido raptados e assassinados por dois membros do Hamas, desencadeando a famosa Operação Margem Protetora, campanha militar lançada pelas Forças Armadas de Israel contra a Faixa de Gaza, que, ao longo de 49 dias, provocou a morte de dois mil palestinianos (697 civis, 256 dos quais mulheres ou crianças) e 60 militares israelitas.
A 7 de outubro de 2023, um “copy paste” assustador de eventos, elevado a uma potência muito superior da versão de 2014, tomaria irremediavelmente o Mundo de assalto. E, de repente, dez anos após o discurso de agradecimento de Ursula Guin, as suas palavras ecoavam ainda com mais força e intensidade. “A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.
Ao longo de 2024, diversos festivais de cinema, concertos, exposições, conferências e peças de teatro, organizados no nosso país, assumiram-se como símbolo de resistência na luta à opressão do povo palestiniano
É bom que não esqueçamos esta ideia, pois diversos líderes de Estados opressores, ao longo dos séculos, nunca deixaram de tê-la presente.
De facto, destruir a herança cultural e artística de um povo como forma de “apagá-lo” da História tem sido uma prática historicamente recorrente em conflitos armados, que, ao longo das últimas décadas, parece ter ganhado um impulso cada vez maior.
Basta pensar nos monumentos destruídos e nas casas saqueadas pelos exércitos de Adolf Hitler, no assassínio do escritor e ativista Ghassan Kanafani, autor de contos e romances que exploram a experiência palestina e a luta pelo retorno dos refugiados, por parte do serviço secreto israelita, em 1972, no bombardeamento das milenares esculturas dos Budas de Bamiyan, no Afeganistão, levado a cabo, em 2001, pelos Talibans, ou nas ações do Daesh, em 2005, que vão da destruição da cidade de Palmyra, património mundial da UNESCO, na Síria, ao roubo de manuscritos centenários das universidades de Mosul, no Iraque, e a destruição, com martelos, de artefactos do museu da cidade.
De cada vez que um monumento cai, sob as mãos de opressores, com ele cai parte de um povo. De cada vez que um artista é proibido de se exprimir, silenciado ou impedido de circular pelo Mundo e espalhar a sua mensagem, com ele é silenciada a democracia e a liberdade e a dignidade humana.
De cada vez que a redação de um jornal recebe um e-mail igual ao que chegou, no dia 4 de novembro deste ano, às caixas de entrada do JL, é tempo de escrever um tema de capa sobre o que se está a passar.
TEMPO DE (RE)AGIR
A mensagem em causa foi enviada pela organização do ciclo de programação musical Vale Perdido. Num comunicado à imprensa, Joaquim Quadros, Sérgio Hydalgo, Gustavo Blanco e Ricardo Lemos anunciavam “com enorme tristeza” que a vocalista e compositora Maya Al Khaldi e a produtora e artista sonora Sarouna, ambas palestinianas, que deveriam atuar a 13 de novembro no Centro Ismaili de Lisboa, infelizmente tinham-se visto “impossibilitadas de estar presentes em Lisboa”.
Em alturas como estas sabemos, não só que as coisas foram longe demais, mas também que chegou a hora de recordar que “a resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.
Foi o que fizeram os organizadores do evento, que, a fim de manterem o concerto do dia 13 de novembro, “um momento essencial para a narrativa programática do Vale Perdido 2024”, convidaram Dirar Kalash, um dos nomes percursores da música improvisada palestiniana, e Ãssia Ghendir, artista da Argélia, para “ocupar” o vazio deixado pelas artistas impedidas de viajar.
Nessa noite, Kalash entregou ao público a alma: A sua e a do seu povo. Quem, a 13 de novembro, entrou no Centro Ismaili de Lisboa, não saiu igual. Jamais esquecerá o canto chorado de Ãssia Ghendir a ser engolido pelo silêncio e pela escuridão da sala.
Jamais esquecerá as notas a curvarem-se em gemidos, a esticarem-se em gritos e, por fim, a calarem-se sob o barulho ensurdecedor de bombas, raids aéreos, alarmes e muros a desmoronarem-se.
Jamais esquecerá o homem – parecido connosco, vestido como nós, à frente de um computador portátil como o que muitos têm em casa – dobrado sobre si mesmo à medida que ouve, e nos convida a ouvir, o som da sua dignidade a ser bombardeada. “Passei a vida inteira em busca do som da minha terra. É este. Vejo que não o consideram um som agradável… mas é um som que tem de ser ouvido”.
Acima de tudo, quem, a 13 de novembro, entrou no Centro Ismaili de Lisboa, jamais duvidará de que “a resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.
CINEMA QUE DÁ A VER
À semelhança do Vale Perdido, muitos outros eventos culturais que decorreram, este ano, no nosso país, assumiram-se como símbolo de resistência na luta à opressão do povo palestiniano.
Em maio, Kamal Aljafari, realizador palestiniano que tem trabalhado incessantemente na defesa da Palestina, preservando as suas histórias e denunciando a política opressora do estado de Israel, ocupou um lugar de destaque na 21ª edição do IndieLisboa, que apresentou uma retrospetiva da sua obra.
Nessa altura, em entrevista ao JL, revelou que, após o início da guerra, apesar de haver muitos sítios onde o interesse e a visibilidade dados a trabalhos ligados à Palestina aumentaram, fazer o seu trabalho “tornou-se mais difícil em alguns lugares, como na Alemanha”, onde vive atualmente.
“Acho que o cinema e as artes podem alterar as pessoas e mobilizá-los. É isso que tento fazer, mas sei que há um bloqueio dos grandes meios de comunicação social”, comentou o realizador.
No final de outubro, foi a vez de o DocLisboa dar importância ao tema, apresentando, dentro da secção Riscos, Some Strings, uma obra poética quase infinita mas de alcance pragmático.
O poeta e professor Refaat Alareer e sete membros da família foram atingidos por ataques israelitas. No seu último poema, Se tenho de morrer, publicado cinco semanas antes de ser assassinado, Alareer apela aos que deveriam viver para criar um papagaio de papel – um objeto de resistência de longa data – com pedaços de fio.
Lançado em março de 2024, Some Strings tinha juntado, até outubro, mais de 100 artistas e seis horas de curtas-metragens.
Tal como o JL noticiou no seu nº 1399, de 15 de maio, o genocídio do povo palestiniano também não passou incólume na 18ª edição do Leffest. O festival dirigido por Paulo Branco contou com um programa especial multidisciplinar, que incluiu um ciclo de cinema, com filmes de diferentes épocas, onde passou, por exemplo, Mahmoud Darwish: As the land is the Language, de Simone Bitton e Elias Sanbar (e outros filmes de Bitton), ou Junction 48, de Udi Aloni, com a presença dos realizadores.
Além disso, esteve patente a exposição: In-Between, de Khaled Jarada, artista visual de Gaza; aconteceu o concerto solidário de música erudita Make Freedom Ring, com angariação de fundos para a Médicos Sem Fronteiras – Fundo Regional para os Territórios Palestinianos Ocupados e países vizinhos, no Tivoli; e ainda uma sessão de poesia, no Teatro do Bairro.
Também a 11ª edição do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival, que divulga o cinema feito por mulheres oriundas de países do Mediterrâneo, reservou, este ano, uma secção especial, dedicada às realizadoras da diáspora palestiniana, além de programar, para a sessão de abertura, no dia 31 de outubro, o filme The Teacher, de Farah Nabulsi, palestiniana nascida e criada no Reino Unido, vencedora de um Bafta e nomeada para o Óscar de melhor Curta-Metragem.
DO TEATRO ÀS EXPOSIÇÕES
Na área da representação, o Teatro Nacional D. Maria II não ficou indiferente ao papel da arte na reflexão sobre os conflitos armados e estreou A Paz é a Paz, a 19 de abril deste ano, nas ruínas do Teatro Romano – Museu de Lisboa.
Criação da UMCOLETIVO, o espetáculo refletia sobre a Guerra Colonial, a Guerra da Ucrânia e a Guerra da Palestina, partindo d’A Paz, de Aristófanes, da obra jornalística e poética de Maria João Carvalho, Nea Kavala e Frederico Martinho, e de entrevistas a refugiadas, madrinhas e enfermeiras de Guerra.
Passando às artes plásticas, há poucas semanas, no Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino, celebrado a 29 de novembro, foi concluído e inaugurado, na Rua da Voz do Operário, no bairro da Graça, em Lisboa, um mural construído com o contributo de pessoas individuais e coletivas, que expressa de forma bem marcante a solidariedade do povo português com a luta do povo palestino e o desejo de paz no Médio Oriente.
No mês anterior, por seu lado, a Casa do Comum havia acolhido a 2ª edição de Arte pela Palestina, um projeto que procura angariar fundos para assistência humanitária na Palestina e cuja programação contou com concertos, performances, exposição de obras dos artistas palestinianos Haya Mihammed, Sabrina Mukarker e Shatha Safi, conversas sobre a importância da arte como forma de resistência, projeção de filmes que explorando as realidades da narrativa da guerra e dos conflitos.
Já a With <3 to Palestine [Com amor para a Palestina], colaboração única entre 69 artistas, portugueses e estrangeiros, unidos pelo propósito de angariar fundos para apoiar as crianças e famílias na Faixa de Gaza, organizou, em maio, uma mostra solidária com cerca de 40 obras, cujo valor da venda reverteu na sua totalidade para a Middle East Children’s Alliance (MECA), ONG com atuação consolidada nas áreas da educação e saúde.
Mas foi de 20 a 30 de novembro que passou por Lisboa aquela que talvez tenha sido a mais desarmante criação artística relacionada com a Palestina apresentada este ano.
No âmbito do Alkantra Festival, o artista palestiniano, residente no Reino Unido, Basel Zaraa trouxe para uma sala de leitura da Biblioteca do Palácio Galveias a instalação interativa Querida Laila, criada para explicar à filha de cinco anos por que razão não podem voltar à casa onde o pai cresceu, no antigo campo de refugiados de Yarmouk.
OS ROSTOS REAIS DA GUERRA
A revolta que o público sentiu no Centro Ismaili de Lisboa, ao ver Dirar Kalash curvar-se sob o peso da própria dor, nasce de um lugar de empatia profundamente humano.
Os poucos metros que separavam cada uma das pessoas de Kalash são os mesmos que passaram a separá-las da guerra que até então acreditavam desenrolar-se a quilómetros de distância. A instalação Querida Laila teve um poder semelhante.
Através de algo tão simples quanto uma secretária cujas gavetas guardam cartas escritas à mão, um leitor de cassetes e um álbum de fotografias, Basel Zaraa conseguiu tocar nesse lugar humano da empatia, ao trazer a guerra da Palestina para dentro de uma sala da Biblioteca das Galveias, fazendo-a sentar-se ao nosso lado, onde a podíamos sentir como se fosse também nossa.
Sobre a mesa repousava a maqueta de um prédio de dois andares, aquele onde o artista nasceu, cresceu e viveu até aos 24 anos, e uma pilha de cartões com instruções. O primeiro pedia ao espetador que abrisse uma caixa onde se encontrava uma carta.
“Queria Laila […], nesta caixa, guardei um tesouro para ti, guardei a nossa história para que não morresse. É uma história que começa com a minha avó e o meu avô, que viviam da terra numa pequena aldeia perto de Haifa, chamada Tantoura. A avó costumava dizer que Tantoura era o paraíso na terra. Mas isso acabou no dia em que o estado de Israel foi declarado na Palestina. Grupos armados israelitas levaram a cabo massacres nas aldeias, expulsaram os habitantes, roubaram-lhes as terras e incendiaram as suas casas”.
Tantoura era o paraíso na terra. Mas isso acabou no dia em que o estado de Israel foi declarado na Palestina. Grupos armados israelitas levaram a cabo massacres nas aldeias, expulsaram os habitantes, roubaram-lhes as terras e incendiaram as suas casas
basel zaraa – artista
Cartão a cartão, o artista pedia que abríssemos gavetas, ouvíssemos o relato da vida das várias gerações que viveram no prédio representado pela maqueta, ou folheássemos um álbum, onde identificaríamos algumas das pessoas referidas anteriormente.
É duro. E é duro, porque Zaraa deixa-nos entrar na intimidade da sua família, rendendo-nos parte dela, ao ponto de sentirmos as suas dores como se fossem nossas.
É duro, porque para relatar de que forma Israel tem magoado vezes sem conta as pessoas que ama, o artista usa uma voz calma, sem mágoa ou rancor. É duro, porque sabemos que, originalmente, o relato destinava-se a uma criança de cinco anos.
O PODER DAS MEMÓRIAS
Também Khaled Jarrar (KJ), um dos mais relevantes artistas palestinianos da atualidade, tinha cerca de cinco anos quando começou a perceber o que era a Palestina Ocupada.
“Subi a uma oliveira e comecei a abanar os ramos, fazendo com que as azeitonas caíssem no cabelo da minha avó. Ela mandou-me ter cuidado com a árvore, mas eu respondi-lhe que, não sendo nossa, era indiferente. Ao que ela retorquiu: ‘Se tomares conta das árvores, elas tomarão conta de ti’, e depois começou a explicar como a sua terra estava a ser roubada pela ocupação”.
Vistas por muitos palestinianos como símbolo de nacionalidade, ligação com a terra, resiliência e resistência, devido à sua longevidade e crescimento lento, as oliveiras são, há décadas, alvo de ataques por parte do Estado de Israel.
Desde 1967, estima-se que mais de 800 mil oliveiras palestinianas tenham sido ilegalmente arrancadas pelas autoridades israelitas. Muitas delas eram centenárias.
Memórias de conversas como a que teve com a avó, durante a infância, marcaram KJ de tal forma que o artista revela ainda hoje serem para si “uma ligação com a terra e com o amor com que os antepassados tomavam conta das árvores mesmo que não fossem as deles”.
De facto, uma das suas obras mais recentes, Unknown Olive Oil, é uma homenagem à terra e uma reflexão sobre o simbolismo da oliveira e do azeite na cultura da Palestina.
Apresentada na exposição Land After Art, patente até 12 de janeiro no Fórum Arte Braga, e produzida em Barcelos, durante um mês de residência artística com os mestres oleiros portugueses João Lourenço e Domingos Vasconcelos, a obra consiste numa série de 60 frascos de barro cheios de azeite extra-virgem, proveniente das oliveiras de KJ, em Kobar, na Palestina.
As memórias que Khaled Jarrar, Basel Zaraa, Kamal Aljafari ou Dirar Kalash partilharam através da sua arte, dificilmente morrerão, pois ecoam dentro de todos os que com elas se cruzaram em concertos, salas de cinema, exposições e teatros
Em 2016, o artista comprou um terreno com 50 oliveiras, enriqueceu o solo com estrume de cabra, adotou técnicas de permacultura e começou a “tomar conta de cada árvore”, conseguindo a primeira colheita de azeite em 2023.
“A terra demora entre cinco e 10 anos a sarar, após começarmos a cuidar dela com produtos orgânicos e que lhe façam bem. Essa é a minha mensagem. Temos de reparar a terra, tal como temos de reparar os seres humanos, das coisas tóxicas. As forças israelitas ocuparam a terra e, a partir daí, ocuparam as mentes das pessoas, a cultura, mudaram o nome das árvores, das ruas e das montanhas”, afirma.
As memórias que Khaled Jarrar “plantou” em Braga, aquelas que Basel Zaraa deixou escritas em pedaços de papel na Biblioteca das Galveias, as que Kamal Aljafari cristalizou nas cenas dos seus filmes, e as que, como bombas, caíram sobre o público do concerto de Dirar Kalash, dificilmente morrerão.
Neste momento ecoam já dentro de todos os que com elas se cruzaram em concertos, salas de cinema, exposições ou teatros. Quem sabe, consolidando nas suas almas a convicção de que “qualquer poder humano pode sofrer resistência e ser mudado por seres humanos”.
E claro, que “a resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.