Podia ser uma simples jovem em férias, ali para os lados de Cascais, mas logo nos primeiros minutos se percebe que Noura Erekat, 43 anos, nascida na Califórnia, não está ali para conversas triviais. Filha de palestinianos que emigraram para os Estados Unidos, Noura formou-se em Direito em Berkeley, é professora na Universidade George Mason, na Virginia, e é uma enérgica ativista pelos direitos do povo palestiniano, espalhado pelo mundo. Não tem papas na língua: Israel é um regime de apartheid e de supremacia branca.
Comecemos pela presença desta jurista em Cascais, numa residência artística da Fundação D. Luís I em junho e julho últimos. Este projeto acolheu antes os escritores Olivier Rolin, Michael Cunningham, Jonathan Coe, Javier Cercas, Nara Vidal, András Petöcz e Sandro Veronesi.
Jornal de Letras: Como está a correr a experiência em Cascais?
Noura Erekat: É uma honra estar aqui. Aproveito o facto de estar sozinha, afastada do meu meio habitual, bastante agitado. Preparo o meu segundo livro, no qual colaboro com o meu colega John Reynolds. Várias organizações de direitos humanos concluíram que Israel dirige um regime de apartheid. Estamos a trabalhar nessas conclusões e a desenvolver uma análise da relação entre apartheid e sionismo.
Já conhecia Portugal?
É a terceira vez que cá estou. Na primeira, vim falar, em Lisboa, sobre o meu livro Justice for Some – Law and the Question of Palestine e fiquei feliz porque o público compreendeu de imediato a ideia de colonialismo, devido à História de Portugal. Quando a Filipa Melo [coordenadora das Residências Literárias], que conheci num encontro internacional, me transmitiu o convite da Fundação D. Luís I, fiquei encantada por ser um espaço para escritores de ficção e por haver tantas mulheres neste programa. Agradeço qualquer oportunidade de simplesmente ter espaço, de não ser interrompida. Nestas circunstâncias, Cascais é um bocadinho de céu: não sei quais são os problemas. Passo a maior parte do tempo no meu quarto. Quando preciso de parar, sento-me em frente ao mar, diante de toda aquela vastidão.
Considerar Israel um regime de apartheid é um conceito novo?
É e não é. É um conceito novo para as organizações de direitos humanos internacionais como a Human Rights Watch, a Amnistia Internacional e as de Israel – a B’Tselem ou a Yesh Din. É muito importante que o tenham reconhecido. Mas não é novo na tradição intelectual palestiniana. Juristas e pensadores palestinianos têm analisado o regime de colonatos, a lei marcial, o estado de direito, a separação, o confisco de terras, as detenções sem julgamento. Entre 1948 e 1966, era um regime de emergência, e tornou-se um regime marcial desde a ocupação de 1967. Antes de me tornar professora, representei uma organização que preparou relatórios para o Comité [das Nações Unidas] para a Eliminação de Todas as Formas de Segregação Racial, cuja Convenção proíbe o apartheid no artigo 3º. Em 2005, eu era uma jovem advogada e fiz um manual para ativistas sobre Israel enquanto regime de apartheid. O que é novo é que agora outros o admitem.
Porquê agora?
O que os políticos têm feito nestas décadas é separar a criação de Israel, em 1948, da Ocupação da Faixa de Gaza, em 1967, como se a primeira estivesse certa mas a Ocupação não. Ao falarmos de apartheid dizemos que há um só regime, não há separação. Israel tem um regime contra todos os palestinianos e um outro regime para todos os seus nacionais judeus.
Nesta altura em que falamos, tem havido muita violência em Jenin e Ramalla. O que pensa disso?
Não é novo. Conseguimos mudar o que pensa a comunidade dos direitos humanos, conseguimos que reconheça o apartheid. Mas em vez de a comunidade internacional se mobilizar, está a permitir que Israel faça pior ainda. Têm o governo mais à extrema direita de sempre, o que é dizer muito em Israel, e nem os israelitas gostam.
Uma mudança no regime de Israel faria a diferença para os palestinianos?
A sociedade de Israel está zangada com o regime porque sente que a democracia está a ser roubada. Mas não contestam a ocupação, o apartheid. Por outro lado, ninguém exerce pressão sobre Israel, pode fazer tudo impunemente, não há sanções internacionais. Se alguém diz que é ilegal, é logo considerado anti-semita. Portanto, ninguém faz nada. A sociedade de Israel é estranha, porque os mais novos são mais conservadores do que os mais velhos. Normalmente é ao contrário, os jovens mudam as coisas, trazem novidade. Portanto, a situação vai piorar. E a comunidade internacional vai continuar assim, com medo de agarrar esta questão como deve ser e os palestinos pagam o preço.
O que é que os jovens pensam sobre a Palestina? São sucessivas gerações a viver com medo e violência.
Veja a incursão em Jenin em julho, uma repetição da incursão de 2002. Vinte anos depois, os mesmos métodos de demolição, ataques indiscriminados, desproporcionalidade, o mesmo discurso. As crianças que viram os irmãos, os primos, os pais a serem mortos agora têm eles próprios filhos e estão a ver tudo outra vez. A mensagem que recebem da comunidade internacional é que foram abandonados, ninguém vai protegê-los. Apesar de tudo, e vê-se isso nas sondagens, os palestinianos continuam a dizer: queremos um Estado, queremos viver em conjunto.
Dois estados?
Não, juntos. Um estado em paz. Para mim, é irónico viver em tamanha violência e continuar a ter esta visão. Mas a comunidade internacional não vê isso. Ouvi na BBC uma entrevista a uma colega minha. A primeira pergunta que lhe fizeram sobre Jenin foi “por que é que os palestinianos põem armas no meio de um campo de refugiados?” Não perguntam por que é que Israel está a ocupar o campo, por que autoriza os ataques às aldeias palestinianas, por que estão a usar meios aéreos numa população de onze mil pessoas em meio quilómetro quadrado, por que destroem com bulldozzers 80% dos edifícios.
As religiões são centrais na violência em muitas regiões do mundo. Em Israel considera que se trata de uma questão religiosa?
Este é um conflito político moderno criado após a I Guerra quando a Liga das Nações foi criada e os Aliados estavam a transacionar os territórios dos impérios derrotados, o turco e o alemão. Prometeram aos judeus uma terra que era habitada por um povo, os palestinianos, na sequência da Declaração de Balfour de 1917. Este movimento é o sionismo e foi uma resposta ao anti-semitismo na Europa. Mas muitos intelectuais, ativistas, trabalhadores judeus tinham propostas diferentes, por exemplo, uma federação europeia sem soberania territorial, como pensava Hannah Arendt. Prevaleceu o sionismo e provocou foi uma interiorização do anti-semitismo. Dizem: a Europa não autoriza os judeus a ser iguais, porque não somos como os europeus. Então, criaram um estado soberano para obter a aceitação da Europa. Vemos isso no modo como Israel se tornou incrivelmente racista e discriminatório em relação aos judeus do médio oriente – os iraquianos, os sírios, os iemenitas, os marroquinos.
Isso acontece ainda hoje?
Israel interiorizou um regime de supremacia branca onde não se ensina árabe. O judaísmo era uma religião e uma comunidade e o sionismo deu-lhe um estatuto legal e criou a “nacionalidade judaica”. O Estado pertence aos judeus de todo o mundo mas não aos palestinianos que viviam lá antes de o Estado ter sido instaurado. Um judeu de Cascais, que não faz ideia de onde fica a Palestina no mapa, pode ter lá mais direitos do que uma velha mulher que nasceu, cresceu e criou toda a sua família nessa terra. Quem pode dizer que isto não é problemático? Onde é que aceitaríamos isto? Num mundo liberal onde acreditamos em democracia, igualdade, cidadania e direitos cívicos, aceitaríamos isto noutro lugar qualquer?
Pode falar-me das suas origens, da sua família?
Sou uma entre muitos palestinianos que vivem na diáspora e não podem voltar atrás. Não temos esse direito. Os meus pais são ambos de Abu Dis e foram para os Estados Unidos nos anos 1970. Nasci e cresci na Califórnia. A minha família quis sempre que eu vivesse nos Estados Unidos e aí seguisse uma vida normal. No início, não apoiavam a minha intervenção – agora estão bem com isso, mas pensavam que eu tinha desperdiçado os sacrifícios deles. Diziam: “ninguém faz isto, porque é que tu fazes?”
E por que é que faz?
Não sei fazer mais nada neste mundo e sinto que é para isto que cá estou. Acho que estamos cá para tornar o mundo melhor, é a nossa oportunidade. Fundamentalmente, somos todos bons e temos de ter a imaginação para acreditar nisso. Mas quando vivemos no medo e na escassez tendemos a tornar-nos sociedades fechadas. Isto é muito claro na Palestina. Não sou nacionalista, mas quando me tornei adulta tinha muita raiva e queria lutar pelo mundo inteiro. Na universidade, aí percebi que ninguém trabalhava o tema Palestina e senti que tinha de fazê-lo, era uma obrigação. Não porque fosse a única causa em que acreditava mas senti que era necessário.
Porque as suas raízes estavam lá?
As minhas raízes estavam lá e eu sabia muito sobre o assunto. Desde miúda, acreditei sempre na justiça. Sou a única rapariga, tenho três irmãos em casa – tinha todas as responsabilidades e nenhuns privilégios. Os meus primeiros protestos foram em casa, atirei a vassoura e disse “não limpo!”, “que injustiça é esta”. As minhas primeira lutas foram de uma rapariga feminista sem a linguagem do feminismo. Queria defender o meu caso mas ninguém me ouvia. Soube que era uma rapariga no mundo antes de saber que era palestiniana. Muito cedo percebi que podemos fazer melhor. E através desse prisma feminista comecei a ver o resto do mundo, vi a pobreza, classes, racismo, colonialismo. E percebi que o mundo não é natural tal como é, mas que foi construído assim, e que podemos construir um outro mundo.
Um primo seu foi assassinado, pode falar dessa tragédia?
Ahmad era um primo em segundo grau, um rapaz tranquilo de 26 anos. Em junho de 2022, no dia do casamento da irmã, dirigiu-se de Abu Dis para Belém para decorar o carro e chegou a um posto de controlo israelita. Um posto de controlo entre duas cidades da Palestina! Quando estava na fila à espera, o carro avariou-se e ele não conseguiu travar. Bateu no quiosque dos militares. Saiu – podemos ver isso no vídeo – e levantou as mãos por cima da cabeça para mostrar que não estava armado.
Mas houve feridos?
Uma militar caiu e levantou-se de imediato, não estava ferida. Em dois segundos, dois colegas dispararam seis balas sobre Ahmad, acima da cintura. Ficou caído no chão recusaram-lhe assistência médica. Apareceu uma ambulância israelita que observou a militar e não socorreu Ahmad. Vê-se tudo no vídeo: estão a fumar, andam à volta do corpo, sabem que não é uma ameaça. Quando o pai dele chega, não o deixam aproximar-se do corpo.
Ele estava morto?
Ele morreu, não sabemos em quanto tempo. De imediato, sem investigação, sem entrevistas, sem autópsia, sem inspeccionar o carro, Israel diz que é um terrorista que estava a tentar um ataque. O que me zanga mais é que era o dia do casamento da irmã e eles pensam que ele odeia Israel mais do que ama a sua família. Por que havia ele de fazer isto à sua mãe no dia do casamento da irmã? Eles acham que não somos humanos e acreditam nestas mentiras. Guardaram o corpo num frigorífico na Universidade de Telavive, no Greenberg Forensic Institute, e não o entregam para podermos fazer o funeral, como forma de crueldade e castigo. Neste momento têm guardados 120 corpos.
Vamos falar de literatura palestiniana, da qual não sei nada. Pode ajudar-me?
Existem vários festivais literários palestinianos, um dos quais nos Estados Unidos, chamado “Palestine Writes”, dirigido pela escritora Susan Abulhawa [Mornings in Jenin, 2010]. Há também o “Palestina Festival of Literature”, dirigido por Ahdaf Soueif, uma escritora egípcia, e o filho dela, Omar Robert Hamilton. A nossa literatura clássica inclui Emile Habiby, que escreveu The Pessoptimist [The secret life of Saeed: The Pessoptimist, 1974], Ghassan Kanafani, autor de Men in the Sun [1962] e Return to Haifa [1970], que foi assassinado por Israel porque era líder da FPLP [Frente Popular de Libertação da Palestina] e editor do jornal da organização. Entre os clássicos, consideraria ainda Elias Khoury, que escreveu Gate of the Sun [1998]. Entre os contemporâneos, Isabella Hammad, Ibtisam Azem, cidadã palestiniana de Israel [The Book of Disappearance, 2014]. Também há muitos a escrever memórias, como Raja Shehadeh, um jurista que fundou uma das mais significativas organizações de direitos humanos na Palestina, Al-Haq [Strangers in the House: Coming of Age in Occupied Palestine].
E quanto à literatura de Israel, com autores como David Grossman, Amos Oz ou Zeruya Shalev?
Não sou uma estudiosa dessa literatura, honestamente. Mas posso dizer que não tem havido escritores de ficção significativos a defender a visão dos palestinianos. Tem havido historiadores, como Alan Pappé, Avi Shlaim e outros, que defenderam um futuro anti-sionista, mas nenhum dos escritores de ficção com quem me cruzei. Leio literatura porque quero que abra a minha imaginação, é uma evasão, uma forma de ir para mundos possíveis. Penso que é o que toda a arte faz, é o que os artistas fazem por nós: mostram-nos possibilidades diferentes, expandem a nossa imaginação. Gosto de me identificar como artista, por causa da minha relação com o tempo e o espaço no mundo em que vivemos. Não nos sentirmos constrangidos pelo mundo.
Vamos falar de cinema da Palestina?
Produzi duas curtas-metragens, documentários, escrevi duas peças de teatro e encenei-as e fiz parte de um grupo que criou o “DC Palestinian Film and Arts Festival”, um festival de artes e cinema no qual basicamente apresentamos filmes, artistas, literatura, música, fazemos debates. Sou uma entusiasta do cinema palestiniano. Um dos meus realizadores preferidos é Mahdi Fleifel, que vive em Copenhaga. Sou uma grande fã de Leila Sansour, com um trabalho no género ficção científica. Há também um duo chamado Tarzan (Tarzan & Arab Nasser). E claro, o mais conhecido é Elia Suleiman que fez o filme Divine Intervention [prémio do júri de Cannes em 2002], de uma trilogia que termina com The Time that Remains [2009].
É norte-americana, apresentou-se como americano-palestiniana.
Não tenho cidadania palestiniana, a maioria dos palestinianos não tem. Só um terço dos palestinianos a tem. Israel tirou a cidadania ao meu pai. Não querem palestinianos. É um dos objetivos do regime de Israel: tomar o máximo possível de território com o mínimo possível de palestinianos.
Gostava de viver lá?
Há uns anos, fui renovar a casa do meu avô em Abu Dis mas isso tornou-se muito duro. A decisão foi difícil porque a qualquer momento Israel pode dizer que a casa não é minha e que não posso viver lá. Não temos direitos, é tudo muito precário. Mas adorava ter essa escolha, adorava ter uma casa para deixar à minha filha, aos meus sobrinhos e às outras gerações, para dizer “esta é também a nossa casa”.
O que pensa dos Estados Unidos neste momento?
O meu empenhamento com a Palestina é também um empenhamento pela justiça para todos. Estou muito envolvida nos Estádos Unidos na liberdade para as comunidades negras, bem como para as comunidades indígenas. Os Estados Unidos são uma colónia de ocupação. Baseiam-se na eliminação de centenas de povos americanos nativos e nunca reconheceram o genocídio. Dizem que morreram por causa da guerra e das doenças.
Identifica-se com essa luta?
A minha mensagem é: não podes compreender a Palestina se não compreendes a situação das nossas comunidades indígenas. Portanto, se não percebes que os Estados Unidos são uma colónia de ocupação, que pratica a supremacia branca na lei, nos tribunais, nas instituições financeiras, na educação, na habitação, contra a população negra, como é que podes compreender este tipo de supremacia racial contra os palestinianos? Os nossos compromissos têm de começar em casa, onde somos responsáveis.
Que idade tem a sua filha? Como é que acha que ela se identifica?
Ela tem nove anos e quero que ela seja uma criança. Mas é uma criança num determinado ambiente. Quando ela tinha cinco ou seis anos, quis que ela soubesse sobre a Nakba mas não queria que ela pensasse que era apenas “tiraram-nos a terra, expulsaram-nos, mataram-nos”. Queria contar-lhe uma história diferente, porque a Nakba não é só a nossa perda, é também a nossa esperança. Passei esse dia no jardim, cavámos, plantámos sementes, pusemos as mãos na terra. Comprei um pequeno cacto e disse-lhe: isto é um cacto e cresce sem água. O que é que isso significa para as pessoas? Como é que conseguimos ainda sustentar-no apesar de não termos água na nossa terra? E depois lemos uma série de livros para crianças sobre refugiados e a Palestina e coisas que ensinavam, mas com alegria. Levo-a às manifestações, senta-se no público e vê-me sempre falar, portanto agora gosta muito de se levantar e falar. Ela tem muito medo da Palestina porque me viu chorar muito. Quando o meu primo foi morto, ela ficou cheia de medo e não quer ir à Palestina, não quer que eu vá. No mês passado fomos lá ao casamento de uma amiga e o meu objetivo nessa viagem era que ela se divertisse.
E divertiu-se?
Divertiu-se imenso. Viu os primos, comeu comida maravilhosa, brincou. Quero instilar nela a ideia de que não é um lugar de sofrimento, que é também um lugar de vida e é por isso que lutamos. Lutamos para viver.