Uma das mudanças mais sensíveis na psicologia coletiva da contemporaneidade reside na representação do futuro. Até há escassas décadas ele era antecipado com entusiasmo, como um lugar mais exaltante para habitar, como uma paleta exibindo cores suficientes para satisfazer todos os gostos estéticos e perfis de felicidade reais e imaginários. Hoje, o futuro manifesta-se no rosto ameaçador das suas arremetidas prematuras. Desta vez não se trata de mais um exemplar dessa espécie de alucinação cultural, como o Medo do Ano Mil, que transforma a angústia num fantasma quase material.
O medo do futuro existe hoje, simplesmente, por ele já ter começado. Insinua-se na mudança dos ecossistemas, dos climas, dos territórios, na amplificação trágica das calamidades “naturais”, onde, sem ser necessário uma particular argúcia de detetive, descobrimos uma etiologia antropogénica. Por isso, nesta crónica iremos comentar, com brevidade quase telegráfica, alguns acontecimentos recentes que contrariam a tendência para desviar o olhar das ameaças. São acontecimentos que nos falam de quem não se conforma com o plano inclinado em que se transmutou a mitologia de um futuro glamoroso, que foi, durante toda a Modernidade, o bezerro de ouro colocado no lugar vazio deixado pelo acontecimento civilizacional da “morte de Deus”.
Portugal em 2071 A jornalista Isabel Lindim meteu mãos à obra para escrever um livro bem documentado e corajoso sobre os nossos próximos 50 anos: Portugal, ano de 2071, com prefácio de Luísa Schmidt, Oficina do Livro, 182 pp., 16,90 euros). Consultando uma ampla documentação e falando com numerosos especialistas nas mais diversas áreas, esboça-nos um cenário carregado de ameaças decorrentes da emergência climática e outras facetas da crise ambiental global que se irão acentuar dramaticamente no próximo meio-século. O seu ensaio está organizado de uma forma coerente que ajuda o leitor a suportar o peso da realidade próxima: começa por um quadro geral da crise global do ambiente e clima, fazendo um zooming a Portugal; identifica as principais ameaças (calor, cheias, incêndios, saúde, economia); mudanças na paisagem (salienta a importância dos estuários, da biodiversidade, e não esquece os nossos arquipélagos dos Açores e Madeira); agricultura e pescas; cidades; energia.
Com serenidade analítica, a autora expõe um horizonte de desafios que vão obrigar os portugueses a mudar as suas instituições, os seus valores, os seus estilos de vida. Já não se trata de evitar o perigo (há muito que a humanidade deixou escorregar os prazos em que tal seria possível), mas sim de ter a inteligência e disciplina para nos adaptarmos e sobrevivermos às ameaças quando elas impactarem sobre o nosso país com uma exuberância cada vez mais destrutiva.
O TC Alemão tem razão Desta vez o Tribunal Constitucional Federal Alemão, sediado em Karlsruhe, ganhou a atenção pública por uma boa causa. Normalmente associado a acórdãos que enfraquecem o compromisso de Berlim com uma maior integração europeia no plano económico, o TC germânico emitiu, em 29 de abril, uma crítica justificada à Lei Federal do Clima, de 2019, por esta não ser suficientemente ambiciosa no desenho do caminho que deverá conduzir à neutralidade carbónica da Alemanha em 2050. Dando razão a vários queixosos, entre os quais se encontram os jovens da organização Fridays for the Future, inspirada pelo protesto da ativista sueca, Greta Thunberg, esta decisão vai obrigar os governos a reverem a Lei do Clima e as políticas que lhe estão associadas. Além disso, este acórdão está em perfeita sintonia com um outro, publicado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de Estrasburgo, no final do ano passado. Ambos os tribunais superiores usaram o mesmo argumento, a saber, o princípio da justiça intergeracional, acerca do qual desde 1994 temos escrito com alguma frequência aqui nas páginas do JL.
Pessoas que fazem a diferença No passado dia 10 de maio, no sempre cativante programa de Paula Moura Pinheiro, “Visita Guiada”, na RTP2, foi exibido um deslumbrante programa sobre as Levadas da Madeira. O entrevistado, que não é novo nestas crónicas de Ecologia, foi o geógrafo Raimundo Quintal. Nos escassos minutos do programa, o professor e ambientalista conquistou os telespectadores com o profundo conhecimento do ecossistema madeirense. Explicou com rigor e clareza a importância da floresta de laurissilva (património natural da UNESCO desde 1999) para a própria habitabilidade do arquipélago. Mas não é só o conhecimento, é também o amor à beleza e fragilidade da Natureza, a autenticidade da entrega de toda uma vida à defesa do bem comum. A integridade ética, às vezes, também passa na televisão. Tal foi o caso com Raimundo Quintal, pelo oportuno convite da notável comunicadora que é Paula Moura Pinheiro.
Outro exemplo de que as pessoas contam está patente na iniciativa de um docente e de uma turma de estudantes da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, de Portimão. A turma 10L da referida escola, sob a coordenação de Carlos Café, professor de Filosofia, lançou uma petição nacional para classificar o dia 25 de maio como Dia Nacional dos Jardins. Esta petição constitui um verdadeiro ovo de Colombo, pois essa data coincide com o aniversário de Gonçalo Ribeiro Telles e a sua entrada em vigor no próximo ano de 2022, a ser aprovada a petição, coincidirá com o centenário do nascimento do saudoso arquiteto, a quem Portugal tanto deve.
O mundo está complexo O futuro carregado de incertezas. Mas são as pessoas que pelos seus atos esclarecidos e pela sua vontade incansável podem desviar o rumo da rota de colisão onde estamos embarcados. A esperança só nasce onde impera a capacidade de iniciativa, e o futuro já não depende da simples e passiva espera, mas da nossa capacidade de nos unirmos ativamente para a tarefa comum de o merecermos.