1 A minha tese de doutoramento, que se chama O lugar do corpo, parte justamente do pressuposto de que o conhecimento se encontra no corpo e que temos que ocupar o lugar do corpo para o percebermos. Ou seja, da bioquímica à Filosofia, todo o conhecimento ganha sentido no corpo e a Antropologia, a Química, a Biologia, todos os sistemas e disciplinas organizam-se com base na investigação que fazem sobre ele. Daí que seja a partir dele que podemos conhecer melhor a própria história do conhecimento, a sua evolução e as suas relações. Uma História do corpo é uma História do conhecimento, da mesma maneira que a história da forma como o corpo é tratado é uma embriologia da cultura. Portanto, todas as histórias do corpo acabam por ser da cultura. Porque ela é um exercício à volta do corpo. Por outro lado, a história do corpo é sempre a da relação do eu com o mundo. No limite, é a História do poder. Michel Foucault acabou por fazer uma escatologia dessa situação com muita acuidade, em obras como vigiar e punir ou mesmo na sua História da Sexualidade. Foi quem melhor conseguiu evidenciar de que modo o corpo é um instrumento de poder, de controlo ativo, mas também sobre o qual o poder dos outros se exerce. Nesse sentido, é muito interessante a relação entre Barthes e Foucault, que abordei um pouco no meu trabalho. Ou seja, como é que o prazer do texto passa para o do corpo e de que forma este pode ser sonegado, retraído. A História do corpo é também a da liberdade, cujo maior exercício é a utilização do nosso próprio corpo. E se fizermos uma História da civilização a partir da forma como a liberdade é contada, temos que passar necessariamente pela do corpo. Tal como se quisermos fazer a história do pudor ou mesmo da importância dos cheiros na civilização. Em suma, não é possível estudar o mundo, abstraindo o corpo do seu lugar. Se o fizermos, faltará sempre qualquer coisa. Mas também é interessante que não é possível pensar o corpo, sem o corpo. Porque nele está o lugar que pensa, o cérebro. Tive um professor de psiquiatria que dizia que não há nada à volta, tudo está dentro de nós. O mundo que vemos, o que imaginamos e construímos, tudo isso é, se quisermos, matéria corporal. O pensamento é corpo. Por tudo isto, é evidente a importância da História do corpo.
2 O meu primeiro trabalho nesse domínio chamava-se Anatomias contemporâneas e tratava de perceber de que forma a arte contemporânea representa o corpo, particularmente a partir da nossa situação, tentando compreender como os artistas portugueses o olham e como o representam. Fiz essa exposição em Oeiras, em 1998 e antes já tinha feito em Serralves As cores do corpo, uma outra mostra que comemorava simultaneamente Abel Salazar cientista e artista. O corpo contemporâneo é também as suas representações. Por isso, a arte contemporânea é uma arte com o corpo tão presente e evidente. Quer seja na evidência escatológica de Piero Manzoni, com a Merda d’artista, numa representação radical da corporalidade, ou na evidência delegada de um Jackson Pollock. A sua action painting é um exercício corporal total. Ao fazê-lo, fez performance, dançou com o seu corpo e o seu corpo animou um pincel que gotejava sobre uma superfície, numa dança quase ritual. O corpo, como objeto de arte, é levado ao limite com a utilização dos fluidos, sangue, urina, esperma, como por exemplo por Gilbert & George. Mas há vários exercícios de radicalização do corpo como projeto artístico. Na verdade, mesmo quando falamos no digital, nas representações extracorporais, estamos sempre a falar do corpo. Não podemos viver sem corpo, nem falar dele sem o utilizarmos. Por isso, é central.JL
* Programador e gestor cultural, ensaísta, atual vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto