António está decidido. E sente coragem. Espírito de aventura, e até uma certa felicidade. Era isto que lhe faltava nos últimos anos. Não se enganem. Não falo de alguém que nos seus velhos tempos era um amante das artes e um lutador de causas nobres e agora sente a nostalgia do tempo em que era jovem e recupera, naquele olhar numa antiga paixão, uma vontade de mudar o mundo que é apenas uma boa recordação. António sempre foi soldado de primeira fila. Como estudante, como médico, como pai, como guerrilheiro, como mecânico, em tempos de crise, em tempos de grandes projetos de mudança. O problema do António não eram as lutas, não era a resistência, não era a oposição nem eram as dificuldades que se encontram pelo caminho.
O António não se assustava com golpes militares, com insurreições inesperadas de extrema-direita, com prisões de alta segurança e elevada ilegalidade, com cybertrucks da Tesla que explodem à porta de edifícios que simbolizam impérios nem tumultos nas ruas, nem com bombas e mísseis que em breve saberão decidir sozinhas quem bombardear. António sabia que quando os governantes incutem medo nas suas populações, os rebeldes estão a ganhar. Sabia que nada desafia mais uma ditadura (militar, política, financeira) do que ignorar as suas investidas e manter um estilo de vida que as questiona. António sabia muito, vivera outro tanto e tinha um optimismo estrutural que não lhe permitia desistir ao primeiro obstáculo. Mas António não percebia este novo tempo. Não percebia as gerações mais velhas mas também não compreendia as mais novas.
António não sabia a quem se aliar, com quem conversar, que lutas abraçar. E essa dúvida amargurava-o. A incerteza de não se saber se há lado certo, se há futuro, se há sequer vontade em continuar uma jornada para um mundo melhor. E António não sabia lidar com esta sensação e com um certo cansaço insuspeito e invisível que o invadia, todos os dias um bocadinho mais, e se espalhava por todo o corpo e por todas as suas ideias. Até ao momento em que viu aquele sorriso na cara de Flora. E pensou: se calhar os tempos não são de certezas. Nem de grandes direções. Sabemos de mais para sermos tão parvos. Para sermos tão inocentes e tão ensimesmados com caminhos únicos e definíveis. Se calhar estes são tempos de ir. Só ir. Saltar o muro e acreditar que do outro lado há algo de novo para descobrir e algo de eternamente reconhecível que nunca se perde.
António tirou o avental, confirmou quantos trocos tinha no bolso das calças direito e enfiou o passaporte e a carta de condução em papel no bolso de trás, um hábito que mantinha desde o momento da “Grande imaterialização” (sobre a qual vos contarei ainda numa destas crónicas). António sentia-se preparado para tudo o que aí vinha. Com e sem tecnologia. Com ou sem companhia.
Sabia que ia encontrar lugares com fronteiras fechadas, e jardins de cancela aberta com pomares com árvores carregadas de frutos deliciosos. Sabia que ia acabar em apartamentos que só abririam com códigos de alta segurança, viver em cidades onde não se vê vivalma e se fala apenas através de intercomunicadores embebidos nos poucos equipamentos públicos. Sabia que iria percorrer longas distâncias em comboios supersónicos subterrâneos e passar semanas sem ver a luz do dia. Sabia que se podia dar a volta ao mundo em catorze horas e escolher qualquer destino de chegada (com o pin certo) e não encontrar ninguém que partilhasse os mesmos sonhos durante anos, mesmo que com todo o dinheiro, todos os contactos, e todo o conhecimento sobre qualquer assunto. António sentia-se preparado. Para percorrer túneis e aprender novos ofícios, para desafiar a angústia e a solidão. E andou e andou e andou e andou e andou e andou e andou e andou e andou e andou e andou e andou. Sem destino. Sem saber. Sempre a questionar, a questionar-se, a reequacionar.
Até que num dos muitos dias se fez meio-dia, era verão, estava muito quente e ele encontrou o seu passado numa catedral em Talin, na Arménia, fundada pelos Kamsarakans, hoje no meio de um descampado, ao lado de um cemitério de muitos séculos, às portas da cidade. Um edifício circular, sem telhado, uma cúpula majestosa cercada por paredes de tijolo vermelho e preto, destruídas por terramotos, guerras e desleixos consecutivos. António entra e olha em redor. Na igreja apenas um serralheiro solitário que constrói andaimes ao som de um rádio de pilhas com a calma de quem sabe que não há mais ninguém interessado na reparação desta igreja. Do outro lado, ainda intacto, um fresco representa um livro aberto sentado num trono almofadado. Numa das torres, os vestígios de uma fonte construída pelo monge Uxtaytur e o seu irmão Tuti em 234 da era armena ou em 783 na era depois de Cristo (ou ontem, nos tempos que correm sem história e sem noção). Ao lado uma inscrição com um aviso numa língua que António não domina.
António olha em redor e sente a calma, sente os séculos, sente-se parte de uma espécie que se dedica a pintar auroques e a erguer santuários, e não percebendo o que isso quer dizer, percebe. Ou aceita. Nesse momento, entra na catedral Lula Pena com um santur à cabeça. Ela não o vê. Também ela percorre o mundo há décadas, à procura daquele tom. Daquela melodia. Lula olha à volta e bate uma palma, outra palma, outra palma, canta umas breves notas. Escolhe um lugar pelo seu eco, monta e afina o santur. Na catedral, e sempre em silêncio, vão chegando pessoas. Duas amigas que por ali estavam a conversar, o guarda do cemitério, dois turistas perdidos, o senhor da mercearia, cada um com a sua razão para estar ali, todos atraídos pelo mesmo som. Uns encontram o seu lugar em cima de uma pedra, outros deitam-se no chão enquanto olham o céu a descoberto, outras ainda se encostam a uma parede, perto do altar, o serralheiro faz uma pausa e desliga o rádio. A caminhada tornou-se num concerto, onde tempo, história, espaço e percursos se uniram durante horas sem que alguém se atrevesse a respirar. É isto, o encontro entre deuses, pensou o António, mas não o pensou com palavras. Apenas sentiu-o.
Quando Lula Pena terminou, seguiu-se o vazio. E o peso. Mas continuava a não se ouvir um ruído. Ninguém se mexeu. Apenas o serralheiro procurou algo na sua mesa de trabalho. Precisava de dizer algo. Encontrou uma maçã, que era tudo o que tinha para o seu almoço. Limpou-a ao macacão azul de trabalho e dirigiu-se para Lula. Fez-lhe uma pequeníssima vénia e estendeu a mão para lhe oferecer uma maçã. Ela aceitou a maçã com um sorriso e um olhar que duraram para sempre. Os olhos de António encheram-se de lágrimas. Era por aqui o caminho. J
Nota: crónica ficcionada baseada no concerto improvisado que Lula Pena deu em Talin, Arménia, no âmbito de uma residência artística da Rota Clandestina no verão de 2023