Numa entrevista (The Paris Review, nº40), Nabokov desfaz um daqueles lugares-comuns que muitos escritores repetem quando falam das suas personagens, afirmando que estas tomam conta da intriga, controlando o destino da narrativa (existem outros recorrentes, como o autor que é apenas um veículo, uma espécie de títere ou médium atravessado por uma inspiração divina ou pela voz das musas; bem como o sofrimento e a dor que o autor diz sentir de forma dramática durante o processo criativo). Evidentemente que existem livros que são orientados pelas personagens, conforme são mais ou menos trabalhadas pelo escritor, mas não existe propriamente uma revolta e usurpação do lugar do autor, deixando este de ter livre-alvedrio e passando simplesmente a obedecer às personagens que ele próprio criou:
“Entrevistador: E. M. Forster diz que as suas personagens principais, por vezes, assumem o controlo e ditam o rumo dos seus romances. Isto já foi um problema para si, ou mantém o controlo absoluto?
Nabokov: O meu conhecimento das obras do Sr. Forster está limitado a um romance, de que não gosto [o romance em causa intitula-se Passagem para a Índia]; e, de qualquer forma, não foi ele quem inventou essa pequena trivialidade, de que se perde o controlo das personagens; é uma ideia tão antiga quanto as penas de escrever, embora, claro, seja compreensível que, no caso dele, as suas personagens tentem escapar àquela viagem à Índia ou para onde quer que ele as leve. As minhas personagens são escravos das galés.”
Curiosamente, este caso é comentado pelos escritores Martin Amis e Juan Villoro, que entrevista o primeiro para a revista Letras Libres. A pergunta de Villoro, que origina o comentário sobre como Forster e Nabokov lidavam com as suas personagens, resvala para o chavão do transe, do descontrolo que alguns autores dizem sofrer:
“JV: Numa entrevista, comentaste que as tuas personagens tremem quando te aproximas. És um autor com um sentido de ordem ou de controlo sobre o que fazes, ao contrário de outros que preferem cultivar demónios interiores aos quais obedecem num transe estilo vudu. Até que ponto tiranizas os teus seres imaginários?
MA: O comentário de que as minhas personagens tremem quando me aproximo é uma adaptação de um comentário de Nabokov. Ele tinha lido Aspects of novel, onde E. M. Forster revela que, quando está prestes a começar um romance, encosta as suas personagens a uma parede e diz-lhes: ‘Ora bem, nada de truques, nada de risos.’ Isto parecia incompreensível a Nabokov: ‘As minhas personagens encolhem-se quando me aproximo’, disse ele, acrescentando: ‘Já vi avenidas inteiras de árvores perderem as folhas aterrorizadas quando me aproximo delas.’ O que estamos a discutir aqui é o facto incontestável de que, quando crias um mundo romanesco, és o seu deus. Mais poderoso do que qualquer deus trovejante do Antigo Testamento.”
Lembro-me de, numa mesa dum evento literário, um escritor (que não nomearei) ter dito que um dos seus livros, que tinha acabado de receber um prémio, fora inteiramente escrito sob essa forma de possessão, em que o autor é apenas um objeto mecânico e onde certas entidades, personagens, musas, demónios — ou mesmo uma qualquer inspiração que paira por aí numa dimensão qualquer — se manifestam no corpo do escritor fazendo com que a obra nasça. Se não foste tu a escrever esse livro, disse eu ao tal escritor, mas apenas o veículo de uma narrativa que pairava noutra dimensão, acho que seria ético devolver o dinheiro do prémio