Sabe que eu tenho de seguir estas novas ordens, mãe, não posso deixar sair a menina antes do intervalo do almoço… mas acredite que eu sei como é…
Estas regras estão sempre a mudar e por vezes não fazem sentido…
A menina tem seis horas a mais de aulas para aprender português e um descanso fazia-lhe bem, mas agora saiu esta regra que diz que os alunos têm de frequentar as aulas normais de português também. Não me leve a mal, tem de pedir à Doutora Joana para lhe dar autorização senão ela não pode sair mais cedo e tem mesmo de ficar ali nas escadas à espera se não entrar para a sala de aula.
Ora, eu também acho que não faz sentido nenhum pôr um aluno numa sala de aula a seguir uma matéria da qual não percebe nada só porque é obrigado, mas enfim…
Eu sei como é… eu também saí de angola com metralhadoras apontadas a mim enquanto a minha irmã mais velha me dizia: Não chores, não chores que ainda vamos presas! Ela tinha nove e eu tinha seis.
Lembro-me da última coisa que fiz antes de embarcar: pedi:
– Ó ‘vó, posso pedir-te um pãozinho com queijo?
Quando dei por mim, no minuto seguinte estava a subir umas escadas para um avião para vir para Lisboa viver com uma tia que nunca tinha visto na vida, ninguém me explicou nada… Fui recebida por ela, no aeroporto da Portela, eu mal sabia ler e ela tinha na mão um papel com o meu nome e o nome da minha irmã.
No dia seguinte, acordei e pedi (lembro-me perfeitamente):
– Ó tio, dás-me um pãozinho com queijo?
Levei logo uma lambada que me atirou ao chão.
Eu estava habituada a tratar a minha família por tu.
Cheguei aqui tinha de tratar os meus tios por você, tinha de pedir a bênção antes de sair de casa, tinha de ir duas vezes por dia à missa quando fui educada sem religião pelos meus pais… Eu sei bem o que é uma pessoa ter de se adaptar em 48h a um mundo completamente diferente, não perceber nada do que está à volta e as pessoas ainda exigem mais e criticam mais porque somos de fora e não somos daqui…
Acredite que eu compreendo bem a sua filha, não deve ser nada fácil chegar aqui, a um mundo bem diferente do seu, e ter de se adaptar a tudo sem que ninguém lhe explique como funcione, mas sabe como é, aqui temos de seguir as ordens lá de cima, eu até compreendo e por mim a sua filha ia já para casa descansar e à tarde vinha com mais energia para as aulas, mas com menores não se brinca.
E se acontece qualquer coisa à menina se ela sair sem autorização, a escola não vai averiguar o que é que aconteceu à menina… Nem pense nisso: a escola vai logo perguntar:
– Quem é que estava na entrada e autorizou a menina a sair?
Quando eu entrei nesta escola, já vai para 18 anos, e por sorte isto não em aconteceu a mim, aconteceu ao meu colega que, coitado, andou aí doente, em psicólogos e em médicos durante anos por causa disto. Uma vez, um miúdo disse que tinha autorização para sair e não tinha.
O miúdo, coitado, só queria atravessar a rua para ir aqui a uma padaria que havia ali já naquela esquina para comprar um daqueles pãezinhos de leite que ele gostava muito para o almoço. Nesse dia estavam duas camionetas estacionadas à porta da padaria, mesmo em cima da passadeira. Um carro passou, não viu que o miúdo ia atravessar na passadeira entre as duas camionetas e apanhou o miúdo de frente e projectou-o contra um poste! O miúdo morreu logo ali!
Acha que a escola perguntou alguma coisa sobre quem era o menino ou quem é que chamou a ambulância, ou como é que isto tudo aconteceu? Claro que não, a primeira coisa que perguntou foi quem é que estava na entrada e a culpa foi logo dessa pessoa, sabe porquê? Porque na escola, se acontece um acidente destes, são tantas as consequências, tantos os problemas que se criam e se têm de resolver que, de repente, o facto de o miúdo morrer é um problema burocrático que se tem de atribuir a uma pessoa e despedi-la o mais rápido possível para não cair nas más graças dos ministérios e das direcções dos agrupamentos, isto é um rol de direcções que nunca mais acaba.
O meu colega teve sorte, pôs logo um advogado em cima, e resolveu tudo, porque uma coisa destas dá logo direito a despedimento sem subsídio de desemprego. E depois quem é que acha que foi ao funeral do miúdo? Fomos nós todos do pbx, e alguns professores, adorávamos o miúdo.
E olhe que a história é bem triste… o senhor que o atropelou, era cá conhecido do bairro, andou a bater mal durante anos e acabou por se suicidar, a culpa deu cabo da vida dele… Como é que chegámos aqui a este sítio? Um sítio onde a vida de uma pessoa já não conta para nada? Um sítio onde nós, que aqui estamos todos os dias, e tentamos fazer o nosso melhor, e conhecemos os miúdos, passamos muito tempo com eles, mais tempo do que eles passam com alguns dos pais, e estamos aqui atados a regras e a leis e a ordens que de repente nos obrigam a obedecer sem perguntar para não levantar ondas?
E como é que se leva tanto tempo para apurar a culpa de alguém que abre a porta e tão pouco a cuidar da saúde mental destes miúdos que se esforçam tanto, saíram mesmo agora de um período longo de quarentenas, tentam adaptar-se e passam aqui os dias a dizerem-lhes não podes fazer isto, não podes fazer aquilo, tens de saber isto, tens de saber aquilo por vezes sem razão nenhuma aparente? Sabe o que eu acho? Devíamos parar para pensar.
Somos boa gente mas estamos todos a tomar decisões por causa de outras que são tomadas por causa de outras e de outras e de outras e não temos como concertar um sistema que deixou de ter lógica. Mas acredite… nada disto é feito por mal, mas não funciona realmente.
Olhe, a dona joana atendeu e disse que a menina hoje pode sair mas é uma vez sem exemplo. Aproveite bem a sua filha ao almoço!