A primeira fotografia que eu tirei foi com uma máquina fotográfica polaroid que roubei ao meu pai. Ele tinha de sustentar a família e teve de sair para ir trabalhar para um sítio sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar, os Camarões!
Ele ficou lá algum tempo e não sei muito bem como nem quando comprou lá uma polaroid e sempre que nos enviava um postal ou uma carta a contar como era a vida lá, também nos enviava uma ou duas polaroids e descrevia a sua casa, o trabalho, as vistas mais bonitas, os seus lugares preferidos… e assim íamos sabendo dele.
Quando o meu pai voltou, também trouxe a Polaroid e, claro, eu queria muito experimentar aquele objeto mágico. Já imaginaste o que era para um miúdo a ideia de olhar por uma lente, escolhes um lugar, clicas num botão e depois ficas a ver a reação do sol no papel que sai de uma máquina que tens na mão…
O meu pai escondia-me a Polaroid, claro, dizia que aquilo era muito caro, que só dava para tirar 10 fotos de uma vez mas eu queria muito brincar com aquilo, e o meu primeiro contacto com a fotografia foi num dia em que o meu pai estava a trabalhar na terra, estava por lá a tratar das videiras e eu estava por lá a brincar com os meus primos e reparei que a Polaroid estava ali, esquecida, por perto. Acho que o meu pai tinha tirado uma foto à minha mãe e eu aproveitei e roubei a máquina e fotografei-o. Acho que como era uma foto dele, ele não se zangou, já era uma lado de relações públicas na altura, e essa foi a minha primeira fotografia, que ainda guardo na parede do meu quarto de criança. E sempre que olho para aquela fotografia percebo que o que gosto na fotografia é esta relação com a distância e com a memória num jogo que permite estarmos em muitos espaços e em muitos tempos em simultâneo. Acho que nenhuma outra arte pratica os multiversos de forma tão estrondosa como a fotografia.
Aliás, se for sincero, o meu primeiro contacto com a fotografia nem vem daí, começou muito antes, com a minha avó materna, uma senhora de olhos verdes que toda a gente adorava, e que sempre foi uma inspiração para mim e que foi educada a ser subserviente e a não pôr nada em causa numa terra em Penacova, mais precisamente, num lugarzinho chamado Carrazedo. Ela era uma pessoa do campo, era a criada dos senhores da terra, e também criada das irmãs por ser a mais nova, levou a vida a servir os outros, e um dia casou-se, super apaixonada pelo Daniel, um homem que a engravidou e passado três meses fugiu para o Brasil ainda com passaporte de solteiro. Naquela altura estávamos num Portugal bem diferente do de é hoje. Imaginem o que era ser mãe solteira, sozinha numa terra no meio de nenhures!
Mas a minha avó nunca mais gostou de homem nenhum, mesmo depois do que ele lhe fez, e com o seu espírito de ser independente, apesar da educação conservadora que recebeu, decidiu construir o seu próprio lar. E construiu uma casa para ela e para a sua filha, sozinha! Fê-lo, e nesse processo, nunca se esqueceu do pai da sua filha, e nos primeiros 15 anos de vida da minha mãe, pelo menos a minha mãe assim conta, a minha avó ainda tinha esperança que um dia o Daniel voltasse. E alimentando essa esperança ela tomou duas decisões: uma, foi aprender a ler e a escrever, para poder escrever cartas ao seu amado, convencendo-o de que deveria voltar. A segunda foi poupar dinheiro para ir todos os anos ao fotógrafo tirar fotografias da minha mãe para lhe enviar e lhe mostrar quão bonita era a filha que o seu amor tinha gerado.
O meu primeiro contacto com as fotografias foi com uma caixa que a minha avó guardava religiosamente debaixo da cama com uma cópia de todas as fotografias que pediu para tirar da minha mãe muito jovem. Eu passava muitas horas a olhar para aquelas fotografias e já na altura percebia que para cada fotografia daquelas, havia um fotógrafo por trás a tirar a fotografia. E que se não fosse esse fotógrafo, eu nunca conheceria tão bem a vida da minha avó ou a minha mãe numa época em que eu não poderia ter estado com elas.
Lembro-me de querer ser aquela pessoa que guardava a memória dos outros através do meu olhar.
Naquela caixa também havia muitas fotos da minha avó muito jovem. Não que ela tivesse dinheiro para tirar fotografias quando era jovem, mas ela era uma pessoa muito acarinhada por todos na vila, e trabalhava muito para muitas famílias mais abastadas, e aos 10, 11 anos já trabalhava para outros e muitas vezes pediam-lhe para pousar com os filhos ou com os netos ao colo frente àqueles cenários que os fotógrafos tinham nas lojas, lembro-me muito bem de uma fotografia em que ela está sentada num banco com um daqueles cenários típicos da Figueira atrás, com os barcos e a praia…
A fotografia tem esta magia, podemos estar lá e regressar àquele lugar vezes sem conta sem nunca lá ter estado. E eu, ao olhar para aquelas fotografias, consigo habitar o passado do meu passado, mesmo antes de eu ou a minha mãe terem nascido. Acho que a minha paixão em fotografar espetáculos vem daí… Muitas vezes termino uma sessão e penso: esta performance, este trabalho monstruoso desta gente , quando terminar, só sobreviverá através das minhas fotografias. Há espetáculos que aconteceram apenas duas ou três vezes, que foram vistos por 100 ou 200 pessoas, mas que depois foram discutidos, pensados, estudados por muitas mais que podem saber como foi porque alguém esteve lá a fotografar no momento em que aconteceu… Claro que eu não sabia na altura que me ia tornar num fotógrafo de cena, mas acho que foi a brincar com aquela caixa de fotografias da minha avó e a roubar a polaroid do meu pai que me tornei fotógrafo.
Eu sempre quis estar lá… Queria ser aquele que se encanta com o momento presente, olha para o movimento de um corpo e dialoga com essa coreografia para a guardar para sempre e partilhá-la com outros que não estiveram lá.
A minha avó nunca viu as minhas fotografias. E nunca mais viu o Daniel. Faleceu há pouco mais de cinco anos e até ao último dia os seus olhos verdes brilharam sempre que falava nele. Curiosamente, nunca vi dele uma única fotografia.