Com um traço fluído e evocativo a preto e branco que facilmente navega do real para o onírico, o percurso do norte-americano Craig Thompson define-se em quatro livros, começando por uma história alegórica na qual personagens antropomorfizadas gerem amizades e perdas (“Good-bye, Chunky Rice”, 1999). O verdadeiro alcance e intenções deste primeiro livro são iluminados no notável “Blankets” (2003), um relato com muito de autobiográfico no qual o protagonista põe em causa a sua educação cristã estrita, à medida que se começa a aventurar fora do meio fechado em que cresceu, e percebe de que modo esse meio condiciona as mensagens que o prende(ra)m. O sucesso estrondoso deste livro, e os efeitos que teve no ego do autor, são bem patentes no diarístico, e menor, “Carnet de Voyage” (2004), onde também constam elementos que viriam a constituir o grande fresco sobre poder e religião organizados, e amor menos organizado, que é “Habibi” (2011). Se Thompson reflete sobre o seu percurso pessoal em “Blankets”, “Habibi” é uma tentativa de olhar externo sobre os mesmos tópicos.
Não é possível resumir adequadamente “Habibi”, no fundo este pretende ser um livro sobre Tudo. Com dois grandes tópicos que se intersectam: uma abordagem simbólica às origens do Islão, e uma história de amor torturado (literal e figurativamente). No primeiro registo Thompson utiliza textos sagrados e profanos, estudos, lendas, e mesmo interpretações de caligrafia, para unir vozes do Corão com as do Velho Testamento, sempre num registo de encantamento e entendimento. Ausente até quase ao final está o Cristianismo, até que Thompson simbolicamente o liga às religiões monoteístas anteriores e posteriores. De certo modo resgata o “cânone” em que cresceu, e que apenas foi castrador (em “Blankets”) por opção de quem o cultivou.
Se este primeiro fluxo narrativo é marcado pela compreensão idealizada, a história de amor entre Dodoma e Zam sofre de todos os tipos de realidade. Escravatura, mutilação, sexismo e racismo são apenas os mais óbvios exemplos de exploração, e nestas partes da narrativa Deus desaparece sob o jugo inexorável do Poder. As mesmas lendas edificantes da “outra” história surgem agora com um cunho quase caricatural na sua malevolência, o sacrifício e a salvação substituídos por diferentes graus de crueldade, a esperança um bem racionado. Como se não bastasse, ecologia/poluição e o açambarcar de um recurso precioso por parte de elites são ainda temas fundamentais no livro. No caso, e de forma presciente (mas também com forte carga simbólica), o recurso em causa é a água, mas podia facilmente ser outro (petróleo, comida, ar).
Há riscos em querer passar várias mensagens num registo ficcional: apenas referir dados seria cair num tom de documentário, criar histórias para os envolver arrisca diluição. E o enorme talento do autor parece sentir isso mesmo, gerando pausas e até momentos de humor/aventura (citando filmes como “Indiana Jones”) mas que parecem desajustados no tom. Dada a multiplicidade de interesses em “Habibi” o risco de menor coesão era exponencial, e o acumular de informações, reflexões, narrativas e personagens faz com que muitas se esvaiam sem consequências. De facto, a simbologia (real ou presumida) em “Habibi” chega a ser asfixiante, também pela ambiguidade espácio-temporal: embora o desenho de Thompson seja brilhante a unir os diferentes tipos de representações, se decorre pouco mais de uma década nas vidas de Dodoma e Zam, parecemos passar da Idade Média à contemporaneidade, percorrendo diferentes sítios de um Médio Oriente concentrado, imaginário. Dir-se-á que é algo menor, mas a falta destas raízes na parte de “Habibi” que se pretende cruamente concreta torna mais óbvias as limitações da longa reflexão sobre o que pretendem, e para que (e quem) podem ser úteis, as narrativas do Deus único que tanto ilumina, como atormenta. Como desaparece. Ao querer ser um pouco mais como Aquele cujo rasto investiga, Craig Thompson perdeu algum do foco de livros anteriores. Produzindo, talvez não uma obra-prima, mas um relato multifacetado que tenderá a estimular em cada releitura.
Habibi. Argumento e desenhos de Craig Thompson. Devir. 672 pp., 40 Euros.