Ex.mo Sr.
Por casualidade, li o seu artigo sobre a minha mais recente publicação
na Banda Desenhada. Posso dizer-lhe, com a mesma liberdade e a mesma
frontalidade que o levou a fazer uma recensão virulenta, que nãogostei dessa sua crítica, que abrangeu sobremaneira o escrito de
Salgari, com considerações meramente pessoais, políticas e
desajustadas. E, como não gostei, repliquei no meu blogue pela forma e
conteúdo que aí deixei explanado.
É evidente que nós, desta forma, com crítica e contra-crítica, nãp
abonamos em prol da BD, particularmente a portuguesa. No entanto, o
“ataque” que o senhor fez ao livro passou para além da linha do que é
comum em peças desse âmbito, com considerações que levaram à injúria,
afirmando que o trabalho era “insultuoso” (ipsis letteris).
Não me lembro de ao longo de centenas de trabalhos (peças e livros
literários, BD, cartoon, etc.), com algumas (poucas) críticas
desfavoráveis, eu receber uma como esta, com tal virulência gratuita.
Nem me lembro de alguém ter publicado em obra trabalhos meus sem, ao
menos, ter-me pedido autorização ou dar-me conhecimento, como
aconteceu no caso da obra “Uma Revolução Desenhada- O 25 de Abril e a
BD”, que assinou com mais dois autores, um dos quais conheço e tenho
grande consideração por ele.
Não sou hipócrita ao ponto de dizer que, com esta sua forma de
criticar (Salgari ou Santos Costa), possamos alguma vez encetar uma
“entente cordiale”.
Santos Costa
Exmo. Senhor Santos Costa
Muito Obrigado pelo seu email, e pela leitura do meu texto sobre o seu livro “Os piratas do deserto”, adaptando Emilio Salgari (ASA).
O meio da banda desenhada nacional é, como sabe, pequeno. Desde logo, e não tendo quaisquer motivos para duvidar que encontrou o meu texto por pura casualidade (como diz), não me admirava nada que o mesmo lhe tivesse sido assinalado por alguém. E, se esse tivesse sido o caso (não importa se foi ou não), apostava adivinhar a identidade dessa pessoa em três tentativas ou menos. Mas isto é irrelevante.
Já escrevi noutras ocasiões que nunca há problema nenhum em dizer sempre exatamente o que pensamos de autores estrangeiros e respetivas obras. Dificilmente lerão os nossos textos, ou nos confrontarão com as nossas opiniões.
Com os nossos compatriotas a minha experiência pessoal é muito simples: ou dizemos coisas positivas, e somos celebrados; ou fazemos algum reparo (mesmo ligeiro), e geramos tensão. Até porque há alguma dificuldade em autores separarem uma crítica a uma obra de uma crítica pessoal. Por vezes são mesmo levantadas objeções sobre outros assuntos não relacionados que ocorreram há anos, e sobre as quais nunca se manifestaram antes. É como entendo o seu comentário ao livro “O 25 de Abril e a BD”.
Quando se debatem obras que consideramos menos conseguidas de autores portugueses há por isso muitas vezes a tentação de optar pelo silêncio e por generalidades: falar sobre o autor, descrever os contornos da obra, mas dizer o menos possível sobre ela em termos de opinião crítica. No fundo, não dizer “bem nem mal, antes pelo contrário”. Sobretudo, obviamente, em espaços públicos. Posso afirmar com total segurança que a distância entre opiniões privadas e públicas de críticos portugueses é sempre maior quando se debatem autores nacionais. E creio que o mesmo será válido em todas as áreas.
Não me considerando hipócrita nem estando à procura de sinecuras diversas, a minha escolha é simples. Digo o que penso, em privado como em público. Nunca falo de pessoas (que raramente conheço), falo de obras. Não pretendo criar quaisquer conflitos, mas também não os tento evitar. No caso de autores estrangeiros, até tenho o cuidado de acrescentar versões em inglês, haja para isso disponibilidade.
Quanto ao seu livro “Os piratas do deserto” considero-o, como referi, uma obra datada e maniqueísta a diversos níveis, que faria sentido se publicada nos anos 1950-60 (e fará sentido do ponto de vista nostálgico para alguns leitores desse período), mas não hoje. Se esta lhe parece uma observação virulenta, gratuita e despropositada está no seu direito. Não a fiz para criar polémica ou insultar alguém que não conheço, mas apenas porque é exatamente o que penso. Se for o único a partilhar desta opinião (há essa possibilidade) serei. O texto está assinado, e nunca deixo comentários utilizando esse famoso heterónimo universal conhecido como “Anónimo”.
Para ter uma ideia mais concreta: na sua abordagem ao que desconhece, e na sua definição de “bons e maus”, “Os piratas do deserto” tem problemas parecidos com, e salvo as devidas distâncias, “Tintin no País dos Sovietes”, “Tintin no Congo” ou “Tintin na América”. Obras que tiveram um papel na evolução do autor, que jamais serão citadas como as melhores de Hergé, mas cuja existência não belisca a sua genialidade, evidente, por exemplo, em “Tintin no Tibete”. Mas neste caso (como noutros) há o enquadramento histórico a considerar. Publicado em 2012 “Os piratas do deserto” não pode, por definição, beneficiar de uma análise contextualizada semelhante. Obviamente que em tudo há “bons e maus”, mas há “bons e maus” interessantes e complexos, e outros unidimensionais e caricaturais. Como há histórias de superheróis (ou da Disney, ou de terror, ou westerns, etc. etc.) desses dois tipos. Umas são interessantes, outras não. Nada tenho contra um género, tenho contra histórias que considero pouco conseguidas.
Como disse também, é muito possível que as fragilidades que deteto em “Os piratas do deserto” do ponto de vista narrativo (personagens e suas relações, vertente antropológico-etnológica, fluxo da história, diálogos) estejam implícitas na obra que adapta, que não conheço. Não que precise de conhecer: o que está em causa é a sua BD, que deve valer enquanto tal. Também eu aprecio Emilio Salgari, mas não o confundo, para não irmos mais longe, com Dumas, Conrad ou London. E nada tenho contra este tipo de obra de aventuras. Mas hoje já não faz grande sentido se escrita exatamente da mesma maneira. É necessário tornar os seus elementos menos estereotipados, mais realistas, mais humanistas. Arturo Pérez-Reverte é um bom exemplo, como noutros géneros George R. R. Martin ou mesmo Stephen King. Ou, na BD nacional, o notável trabalho de Jorge Magalhães e Augusto Trigo, apenas para dar um exemplo. Um “western” que hoje apenas incluísse “clichés” estereotipados e representasse os “índios” nativos apenas como meros selvagens irracionais sedentos de sangue seria certamente vilipendiado; no entanto esse tipo de histórias era comum noutras eras. O passado não muda, mas temos obrigação de tentar mudar o presente. Na adaptação da história de Salgari acho que lhe faltou esse “salto”, talvez por uma fidelidade ao original que, desse ponto de vista, não a mereceria. Sempre em minha opinião, sublinho.
Por último refiro o que me disse um antigo editor quando discutíamos uma crítica minha (positiva, por sinal) a um seu livro: ao contrário do que muitos críticos gostariam de pensar, da sua experiência era duvidoso que um texto (qualquer texto, em qualquer meio de comunicação) influenciasse decisivamente o sucesso de uma obra (de BD). Se críticas negativas fossem tão potentes certos autores não venderiam um único livro, e vendem milhões. No texto digo isso mesmo: desejo que todos os livros encontrem os seus leitores, independentemente daquilo que eu penso deles. Acredite ou não, desejo-o também para os seus livros.
No final declara não achar que possamos encetar qualquer “entente cordiale”. É interessante que se refira a um acordo entre potências colonizadoras, cujos efeitos o mundo ainda sente hoje. Mas o objetivo do meu texto foi apenas dar a minha opinião sincera sobre o seu livro, e apenas sobre este seu livro. Tal como fez o favor de me dar a sua opinião sincera e sentida sobre a minha opinião. Mentiria se achasse que esperava que concordasse comigo. Sei o que custa produzir o que quer que seja, em várias áreas. É sempre (muito) mais difícil do que falar sobre o que foi produzido. Daí ter referido logo ao início que gostaria de poder dizer qualquer coisa mais positiva sobre “Os piratas do deserto”. Infelizmente não foi o caso.
Melhores Cumprimentos
João Ramalho Santos