A convite do arqº João Appleton e do padre José Manuel Pereira de Almeida, Fernanda Fragateiro subiu a bordo da operação de restauro do espaço arquitetónico da Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, realizando a pintura mural da Capela da Porta Dourada, inaugurada em maio deste ano.
É a primeira vez que realiza uma obra especificamente destinada a um contexto religioso?
Não. Antes da pintura mural para Santa Isabel já tinha feito vários projetos, uns permanentes e outros temporários. Alguns deles foram realizados para espaços que já não mantêm a prática do culto, nomeadamente uma peça, que é o próprio chão da capela de Santo António, no Montijo, e outros para locais onde ainda se pratica o culto, como o Presbitério do recinto de Oração do Santuário de Fátima, com arquitetura de Paula Santos, para o qual fiz a parede tardoz, e ainda outras instalações de carácter temporário no Mosteiro de Alcobaça, na Travessa da Ermida, em Belém, e na Igreja da Misericórdia, em Silves.
Qual a maior diferença entre criar obras para espaços que já não têm a prática do culto e obras para espaços onde essa prática ainda existe?
Não há nenhuma, a não ser, talvez, a nível de questões práticas. Por exemplo, no Mosteiro de Alcobaça a peça teve de ser colocada num espaço onde não entrasse em conflito com a celebração da missa nem com o acesso das pessoas à igreja. De qualquer forma, para mim, a ideia do corpo poder usar o espaço é que é sempre importante, seja qual for a finalidade.
Em que se inspirou para pintar este mural? Leu algum texto específico ou tinha algum ritual? A obra reflete, de alguma forma, as suas próprias inquietações e reflexões?
Esta obra quer, sobretudo, resolver um problema: a necessidade de restaurar uma capela destruída durante uma reforma, nos anos 40, a partir da qual passou a ser usada como porta de ligação entre a igreja e um edifício adjacente. A restituição da capela à igreja deparou-se com o problema da ausência de conteúdo para a mesma.
O desenho usado para a pintura mural representa, de forma minimalista, uma sucessão de arcos geométricos que progridem do branco até ao negro e que representam um túnel, um espaço de passagem. O tema é precisamente o da representação do espaço vazio, do espaço de atravessamento, sem outra história para contar.
E a inspiração, chamemos-lhe assim?…
Nasceu de um conjunto de pinturas trompe-l’oeil, pré-existentes, que se encontram nas janelas superiores da nave central e que sugerem, através de uma ilusão ótica, à qual recorri também para a pintura do mural, arcos ou lugares de passagem.
No caso do mural, a ilusão é reforçada pela presença de uma elaborada grade-porta de madeira folheada a ouro, cujo desenho cria um complexo jogo de linhas e de sombras que se projetam sobre a pintura, desfazendo a sua geometria e tornando mais complexa a simplicidade do meu desenho.
Tal simplicidade foi algo que definiu logo com o patriarca ou deram-lhe total liberdade?
A liberdade foi total. Como tem de ser. Nada foi definido à priori nem houve uma narrativa encomendada pela Igreja. A minha relação foi com o espaço arquitetónico e com a luz. E também com a pintura do Michael Biberstein [fresco que cobre o teto da igreja, representando o Céu, e que foi a maior, e última, obra do artista], que importava não importunar.
A simplicidade e o elevado grau de abstração refletem uma preocupação sua em dar espaço às orações de quem contempla a obra?
Não sendo uma pessoa religiosa, as minhas preocupações foram as de contribuir delicadamente para um conjunto de trabalhos que foram feitos por arquitetos, artistas e artesãos, ao longo de séculos. Aprendi com as pinturas de arcos que encontrei nos vãos das janelas, e usei o meu desconhecimento sobre Religião para desenvolver esta intervenção, livre de narrativas.
O meu respeito pelo trabalho do João Appleton, do padre José Manuel, do Biberstein, do Miguel Vieira Baptista [responsável pelo conceito do mobiliário litúrgico], entre outros, ajudou-me a seguir este caminho. A representação de um espaço de passagem, de atravessamento é isso que a pintura faz, seja ela figurativa ou abstrata. Tive o prazer de ouvir as reflexões do patriarca de Lisboa sobre a pintura mural e fiquei contente pela diversidade de leituras que ela sugere.
O que é que o patriarca lhe disse?
Obviamente encontrou naquela pintura uma série de referências importantes para a Igreja Católica. Por exemplo, a ideia de espaço de passagem e a relação que este tem com a crença de que existe um lado de lá e uma vida depois da morte.
Uma peça de arte contemporânea, como esta, é capaz de trazer novas interpretações da espiritualidade para dentro de uma igreja?
Eu não sei separar o espiritual do material. O curador Paulo Pires do Vale escreveu um belo texto sobre algumas intervenções que fiz em espaços sagrados e diz que elas são “exercícios- materiais e espirituais, a um tempo para guardar o vazio”.
Da mesma forma que uma pessoa é capaz de ficar horas a olhar para imagens religiosas, com tudo aquilo que elas significam, eu fico a olhar para uma pedra, para pigmentos ou para uma forma abstrata. Para mim, são tão espirituais como uma ideia ou um desejo.
Eu, que não consigo conversar com aquilo que vem da simbologia religiosa, dou por mim a falar com a bela pedra liós que construiu as paredes da igreja, com o vazio que está sempre a mudar de forma, com a luz ténue ou intensa e com a relação entre todas estas coisas.
Depois, o espiritual está na seriedade do trabalho de cada um dos envolvidos neste processo, na vontade de contribuirmos para o restauro deste belo espaço arquitetónico, e, obviamente, no respeito pelo passado enquanto se pensa no presente e se deseja o futuro.
O silêncio e a introspeção são frequentemente associados à religião e a uma dimensão espiritual. Uma vez que não dissocia o espírito da matéria, são também indispensáveis ao seu processo criativo?
Muitas vezes as pessoas acham que o meu trabalho funciona bem dentro destes espaços de contemplação, de introspeção, em que se “fala” com quem não está presente, com a ausência. Eu acho que o silêncio e o vazio não me levam necessariamente à introspeção.
Dão-me antes espaço para ouvir e receber informação sobre outros projetos, outros tempos, outros seres e outros lugares. O vazio é um espaço expectante, à espera de ser ocupado pelos corpos, pelos objetos, por raios de luz, pela sombra… E o silêncio permite-nos ouvir.
Quando estou a projetar, a pensar numa obra, estou, antes de mais nada, a absorver o que vem de fora de mim. Não estou muito interessada em escutar-me, mas sim em descobrir. As minhas obras dependem muito de processos de investigação e não de inspiração que venha do além, ou de processos mais introspetivos. Claro que uma boa dose de intuição também é muito importante.
A Arte e a Religião, por vezes, podem cair no “espetáculo”. De que forma se resiste a isto e se frui artisticamente da forma mais “pura”?
Para se ser religioso é preciso acreditar naquilo que não se vê, que não se conhece completamente, que não se pode provar. Para compreender e amar a Arte também é preciso acreditar. Se as pessoas estiverem, logo à partida, com o pé atrás e não deixarem espaço para a descoberta, para perceberem o que estão a ver, é muito difícil perceber a arte contemporânea.
Por outro lado, é uma área muito específica, portanto, quanto mais conhecimentos temos, mais profundamente a podemos compreender. Mas, acima de tudo, é preciso procurar em nós a capacidade de ver, pensar, sentir e acreditar que estamos perante algo que tem interesse, que tem uma voz e que nos permite atravessar a realidade para além de um plano mais óbvio.
Esta “tarefa” de dar a ver o que está escondido, mais do que um trabalho é uma vocação. De que forma tenta cumprir a sua?
Quando penso na minha vida profissional e pessoal sei que são indissociáveis. Não tenho uma carreira, tenho uma prática. Entre os artistas não existem hierarquias como existem nas carreiras profissionais. Não se chega a chefe. Mas, para responder à sua pergunta, cito o escultor americano Carl Andre que dizia que o trabalho dos artistas é transformar sonhos em responsabilidade.
Há dias em que é difícil?
É difícil e é maravilhoso. O trabalho criativo é duro. As ideias não caem do céu, pelo menos para mim. Nem mesmo no trabalho para a igreja a ideia caiu do céu! É preciso sentir, saber, intuir, procurar que o trabalho resulte em qualquer coisa que contribua para a construção de um mundo melhor. E, embora o trabalho artístico seja um trabalho laboratorial e experimental, pelo menos, tal como eu o vejo, junta e mistura muitas coisas e não tem passos claros para se chegar ao fim. Por isso é também uma aventura.
É uma aventura, mas depois…
Depois existem outras dificuldades exteriores, que têm a ver com a especificidade da criação contemporânea nem sempre ser compreendida, valorizada e recompensada. E, nalguns casos, essa desvalorização das artes visuais vem da parte de entidades públicas que não reconhecem a importância desta área do pensamento. Eu não consigo entender porque é que, nas grandes obras públicas, não existe uma pequena percentagem afeta às artes visuais, tal como aconteceu no passado em edifícios públicos, escolas públicas. Por isso o exemplo da Igreja de Santa Isabel é absolutamente louvável.