Quando um dia lhe perguntaram qual a resposta para a sua arte, Fernando Lanhas (1923-2012) simplesmente respondeu: “Mas eu ainda nem sequer encontrei a pergunta certa”. O curador e programador Miguel von Hafe Pérez (MHP) recorda o episódio que, em seu entender, “diz muito de um homem que toda a vida manteve uma maneira de se expressar única numa multiplicidade singular de meios completamente distintos, como a pintura, evidentemente o mais reconhecido, mas também os desenhos, os mapas, diagramas”.
Numa “imensa curiosidade” radica a sua arte, como assinala por seu lado a curadora e diretora adjunta do Museu de Serralves, Marta Moreira de Almeida (MMA), no “interesse pelo ser humano e pelo universo”: notava-se no seu olhar que “tudo podia ser matéria de fascínio”, afirma. E de indagação: “Por que estamos aqui, neste lugar?”
Múltiplas facetas, do pintor, arquiteto, poeta, interessado pela ciência e pela arte, que o filho, Pedro Lanhas (PL), resume numa só: “A procura do conhecimento e de tornar as coisas visualizáveis”. “Ser possível ver era uma das suas preocupações”, adianta. “Fez um quadro, um gráfico com um milhão de pontos, porque queria ver o que eram um milhão de unidades, e mapas cronológicos para comparar as escalas de tempo, porque os números são abstratos, e é preciso vê-los. Ele queria tornar visível a abstração. Ver para entender”.
Por outras palavras, “era uma pessoa muito curiosa, com uma grande ânsia de saber, gostava de perguntas e procurava as respostas de uma forma visível”.
CIENTÍFICO E ARTÍSTICO
Nascido no Porto em 1923, Fernando Lanhas cedo manifestou a sua perplexidade sobre o mundo, a “aventura” do homem e o universo. Aos cinco anos, como assinalava na sua autobiografia, já “observava diariamente o comportamento das formigas com o auxílio de uma lupa”, e aos 12, “na praia da Boa Nova, em Leça da Palmeira, a bioluminescência dos anfípodes Talitrus saltator”.
Ainda aos 12, perguntou na escola “qual a razão da concordância e ajustamento dos perfis dos continentes africano e sul-americano”; aos 19, fez em barro um modelo da superfície da Lua, da zona entre os mares; e mais tarde, nos anos 60, realizou um modelo do quadro geral do Universo, mapeou e procurou proceder à medição das galáxias. Ao correr do tempo, alargou o seu interesse pela arqueologia, a geologia, a botânica, a etnografia e a astronomia, dos seixos da praia, que apanhava nos seus passeios pelo litoral, às estrelas distantes.
A escala da sua curiosidade, do pequeno fragmento de pedra ao espaço galáctico, não se saciou, no entanto, no campo da ciência. Aplicou-a também à arte. “A própria pintura era uma das suas procuras, a estética uma das preocupações, daí a abstração”, diz ainda PL.
“Dos micro aos macro fenómenos”, como observa MHP. “Tinha a curiosidade dos cientistas, mas que não são artistas. Não quer dizer que, por exemplo, as suas cartas das passagens de cometas em Portugal sejam absolutamente rigorosas cientificamente, o que é fantástico é que o queira transmitir em termos artísticos”, comenta.
Fernando Lanhas fez o curso de Arquitetura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, que conclui em 1947, com uma tese sobre museus de arqueologia. E foi durante o curso que o jovem Lanhas descobriu a pintura, sendo considerado um pioneiro do abstracionismo geométrico no nosso país.
Ao desenho e à pintura a óleo, sobre tela ou madeira, somou a pintura sobre pedras, e da mistura de pedra moída e pigmentos fez a sua paleta. “Ele gostava de passear nas praias, de fazer expedições e recolher fósseis, seixos rolados, que depois muitas vezes usava nas suas obras. E o facto de ele trabalhar nos projetos para pesquisar e perceber também prende a nossa atenção”, sublinha MMA.
BUSCA INTEMPORAL
Miguel von Hafe Pérez também sublinha o gosto de Lanhas pela Natureza. “Há uma foto muito bonita dele a pintar na serra de Valongo, e essa relação era primordial”, diz. “Quando pinta nas pedras é um ato de respeito. Logo em 1943, quando faz as suas primeiras pinturas referenciais na arte portuguesa, ele também recolhe pedras que ainda guardam as marcas da passagem por elas de animais com milhares de anos, que usa no seu trabalho e que, contrapostas à sua pintura abstrata, fazem todo o sentido. A sua abstração não tem a ver apenas com o século XX, busca a essência da arte em milhares de anos, há nela uma intemporalidade”.
Naturalmente, Pedro Lanhas também recorda as expedições exploratórias do pai. “Fui muitas vezes com ele à praia, mas ele até ia de fato e gravata, não ia a banhos e apanhar sol, mas procurar calhaus paleolíticos. E aos domingos, nos encontros familiares, o meu avô materno, que era médico, mas muito interessado por questões da ciência, da física, da matemática, era objeto das muitas perguntas que o meu pai tinha sempre, e entretinham-se tardes inteiras”, lembra. “Aliás, sempre procurou falar com especialistas, trabalhou com arqueólogos e fez mesmo as suas descobertas, por exemplo o castro de São Paio, em Labruge”.
Lanhas gostava de perguntas, mesmo as mais desafiantes, como a que um dia lhe fez o filho em criança: “Há quanto tempo há tempo?” “Gostava de ouvir as suas respostas, e não por ser meu pai. E reagia sempre muito bem às perguntas sobre pintura, porque juntava sempre o conhecimento que tinha sobre a pré-história, a arqueologia, fazendo o enquadramento desde as pinturas das cavernas”.
São de 1943 pinturas como “Meninas e barco” ou “Casas de Valongo”, e então começou “Canção Triste” e “O Violino”, o primeiro óleo abstrato, que irá expor na 3.ª Exposição Independente, no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. “Ver como era foi uma das razões que o levou a fazer pintura abstrata”, avança PL. “Fez mais uma vez para ver, tal como quando concebeu um mapa comparativo da importância das forças conforme a escala das coisas, do subatómico ao interplanetário”.
O seu gosto pela geometria e pela matemática também pesou. Era visível na própria forma como identificava as suas obras. “A abstração também nasce do facto de ter uma grande capacidade de traduzir a sua mensagem através da matemática”, observa MMA. “Ele tem obras a que chamou “As Nuvens”, ou “Pássaros e Rochedos”, ou “Barcos”, títulos mais convencionais, mas a maior parte do seu trabalho plástico, pintura sobre tela, madeira ou pedra, desenho e colagens, é intitulado como se se tratasse de um inventário, de uma catalogação, dando no título a informação do tipo de obra e material, a data e o número de série do ano em que foi produzida. Isso dá-nos desde logo uma abstração”.
COMPREENDER TUDO
Serralves celebra o centenário de Fernando Lanhas com a exposição O Homem É Fenómeno Magistral, que surgiu de um desafio lançado a Marta Moreira de Almeida que, de resto, conheceu e trabalhou, direta ou indiretamente, com o pintor noutros momentos expositivos, nomeadamente numa mostra itinerante, comissariada com Ricardo Nicolau, que passou por sete cidades. Em 2001, na Porto Capital Europeia da Cultura, fez-se uma grande retrospetiva no Museu de Serralves, um “importante balanço da sua obra”, como recorda a curadora. “Foi um grande gosto voltar a trabalhá-la na nossa coleção”, afirma. “É tão rica que acabou por não ser difícil pensar o que mostrar de novo. Foi fantástico abordar a sua importante carreira, com um universo imenso de áreas em que esteve envolvido e pelas quais se interessava verdadeiramente”.
Marta Moreira de Almeida recorda também como foi fascinante conhecer Lanhas nos anos 90, quando começou a trabalhar em Serralves. “O gabinete na Casa tinha uma enorme janela para o parque de estacionamento, e guardo na memória o momento em que veio para uma conversa que tínhamos combinado. Recordo-o a estacionar, a sair do carro e tirar da mala uma maquete, porque já trazia toda pensada a exposição que ia fazer na Quadrado Azul e para a qual íamos escolher as pinturas já em depósito em Serralves, vindas da coleção da Secretaria de Estado da Cultura”, conta. “Foi aí que o conheci e lembro como era uma pessoa muito enérgica, ativa e que não gostava de perder tempo, mas tinha sempre histórias fantásticas para contar”. E acentua que eram “muito frequentes as suas vindas até ao gabinete das exposições, e às vezes até acabava por dormir uma sesta”. De resto, a curadora assevera que era um artista que “sabia muito bem o que queria”.
Com João Fernandes, então diretor de Serralves, MMA preparou também, em 2003, uma celebração dos 80 anos de Fernando Lanhas. “Lembrei-me das obras que ele fez para essa celebração e pensei mostrar precisamente o Lanhas mais contemporâneo, do século XXI, pegando nessas duas peças, ‘Ortoscópio’ (2002) e ‘Sol’ (2003), que constituíram o ponto de partida de ‘O Homem É Fenómeno Magistral’”, explica. “Tracei um eixo central em torno delas e procurei mostrar um pouco de tudo no seu universo, até porque é alargado o núcleo da sua obra na coleção e do seu espólio em depósito em Serralves”. E acrescenta: “A pintura tinha de estar presente pelo significado no seu percurso, até por ser pioneiro na arte abstrata, mas na obra de Lanhas é muito importante a compreensão de algo mais vasto que o mundo, o universo, que o intrigava e interessava”.
São 14 as pinturas de Lanhas que podem ser vistas na exposição de Serralves, e “Carta das distâncias e rotas dos planetas do sistema solar e de algumas estrelas”, de 1969, em que o artista procura, “através de uma escala, dimensionar o universo”, é outra obra que configura esse eixo. “Tem 50 metros e na exposição só consigo mostrar nove, abrindo a ‘Carta’ como se fosse um livro, selecionando algumas páginas”, adianta. “Em conjugação com esse eixo parti também de algo menos conhecido, a série de edições que Lanhas publicou entre 1994 e 2011 em que dá a conhecer as suas pesquisas e estudos sobre o universo, mas também a geologia, fazendo os seus grandes diagramas, mesmo sobre a sua vida e trabalho, e igualmente pensamentos, poemas, registos de sonhos, que podemos consultar nessas 14 publicações”.
Foi numa delas, de 2000, altura em que passaram a ser editadas pelo Museu de Serralves, que MMA encontrou o verso que dá nome à exposição: “Ele descreve o homem como uma aventura, um ser vivo especial que tem cérebro e uma capacidade técnica de criar arte conjugando-a com a ciência, a filosofia, a matemática. É a partir do seu fascínio pelo ser humano que ele quer compreender tudo”.
Um “desígnio”, como acentua MHP, que também toma como exemplo o já referido mapa de meia centena de metros, de que mostra igualmente uma secção na exposição Sabe o Que Não Sabes que organizou para o Centro de Artes Visuais (CAV) de Coimbra, uma “tentativa de em termos visuais apreender o universo todo, e é incrível como alguém o pode querer fazer”.
DIMENSÃO COMPLETA
Sabe o Que Não Sabes celebra, de igual modo, o centenário de Fernando Lanhas. Integrada no ciclo A Vida Apesar Dela, com curadoria de MHP, pretende mostrar as diferentes faces da obra e do pensamento do artista. A ideia nasceu quando o curador começou a trabalhar com o espólio para as exposições Lanhaslândia, na galeria Quadrado Azul. “Desde essa altura fiquei com a preocupação de não deixar passar o centenário, porque sendo ele uma das figuras incontornáveis do século XX português, parecia-me inacreditável que nenhuma grande instituição, nomeadamente em Lisboa, onde é menos conhecido, fizesse uma exposição”, adianta. “E quando fui convidado a criar a programação do CAV nestes quatro anos, aproveitei para a fazer. É importante sublinhar que mais de 70% das obras que mostramos no CAV vêm diretamente da casa do filho de Lanhas, portanto muitos trabalhos inéditos, principalmente estudos e desenhos”.
É uma exposição que tem justamente a vocação de mostrar “a dimensão completa do artista”. Apresenta “pequenos apontamentos do trabalho de arquitetura, ao nível das artes gráficas, além da pintura, de obras com relação com a astronomia ou a arqueologia”. E também um “maravilhoso conjunto de anedotas, que ele escreveu para o jornal Primeiro de Janeiro, com o pseudónimo Clemente, no final dos anos 40, início dos 50. Ele recortou-as e colou-as sobre cartão e são elementos que trazem à exposição um interesse muito particular, tal como as peças que raramente foram vistas, como uma série de placas tipográficas, porque ele trabalhou muito com livros e adorava esse mundo”, salienta ainda o curador.
Entre 1944 e 1950, Lanhas assumiu a organização das Exposições Independentes, dos alunos da Escola Superior de Belas-Artes do Porto. “Era alguém sempre interessado em fazer e mostrar o que se fazia”, recorda MMA. “Não apenas organizava as exposições, mas concebeu também o desenho gráfico do catálogo”. Realizaria projetos gráficos de várias edições para a Portugália. Nessa altura, com Victor Palla e Júlio Pomar, colaborou na página “Arte” do diário A Tarde.
Datam também desses anos os primeiros poemas e a escrita. Poesia mas também ficção e reflexões ensaísticas foi uma outra vertente em que Fernando Lanhas refletiu a sua curiosidade. “Ele disse uma vez que o homem começou quando pôs flores numa sepultura. Escreveu sobre a morte, perguntando ‘Não ser vivo, como é? Não ter o sabor das coisas, não saber que não se existe’, rematando ‘Ah, a morte até me interessa’. Mais do que ter medo, tem a curiosidade de saber como é estar morto. Sempre foi quase como uma criança que quer ter o conhecimento de tudo”.
A sua poesia faz-se, aliás, “mais de perguntas do que de respostas, como a questão da morte ou de Deus, e curiosamente tem duas ou três imagens de Cristo, uma forma de o visualizar: ele atira para a poesia as perguntas que não têm resposta, não a distância da Terra à Lua, que é um número concreto”.
TRAÇO MUSEOLÓGICO
Depois de alguma estranheza inicial, Fernando Lanhas teve reconhecimento do seu trabalho na pintura, tendo nomeadamente participado na Bienal de São Paulo. Mas apesar do “respeito que granjeou com a pintura”, talvez não se percebesse a “dimensão global do fenómeno Lanhas”, que segundo MHP “só se começou a descobrir com as exposições mais abrangentes da sua obra”.
De 1973 ao início do novo milénio, Fernando Lanhas fez, aliás, um interregno na pintura, coincidindo com o período em que foi diretor do Museu de História e Etnografia do Porto. “Ele esteve também focado no trabalho nos museus e fez intervenções muito importantes, por exemplo no de Conímbriga, que ainda conseguimos ver e que julgo que seria fundamental preservar. E é ainda muito Lanhas o traço do desenho da exposição, as vitrinas”, salienta MMA. “No museu da Figueira da Foz, a coleção de arqueologia também mantém a sua disposição. E ainda consegui ter em Serralves algumas dessas vitrinas, uma dedicada às publicações, outra a pintura sobre pedras”.
Na exposição de Coimbra também há imagens desses museus em que Lanhas foi responsável pela museografia. “São incríveis, e nelas pode ver-se a qualidade desse trabalho, o cuidado que punha até a desenhar plintos e todo um dispositivo visual de verdadeiras obras de arte”, faz notar MHP. “Infelizmente desapareceu a sala de Cosmologia do Liceu Garcia de Orta que ele fez, sendo uma obra de artista e arquiteto, era ao mesmo tempo divulgação científica mas também escultura. Ele tinha essa vontade de partilhar sempre o interesse pelo que nos rodeia com os mais novos. E a noção da importância de divulgar o que sabia. E conhecia até a história dos brinquedos como poucos”.
E acrescenta: “Tudo isso faz dele uma personagem absolutamente ímpar”. Sabe o Que Não Sabes é, para ele, uma “máquina para compreender” Lanhas.
LEVITAR E SONHAR
A arquitetura foi, paralelamente ao percurso artístico, a ocupação profissional de Lanhas. “Nunca achou que fosse um lugar para extravasar a criatividade, não fazia casas para ver, mas para que as pessoas se sentissem bem lá dentro”, sustenta PL. “A arquitetura para ele nunca foi arte, para isso dizia que tinha a pintura”. O seu acervo arquitetónico está em grande parte depositado na Fundação Marques da Silva. Projetou, nomeadamente, um bloco habitacional na Avenida Sidónio Pais, no Porto, apresentado em O Homem É Fenómeno Magistral. “A formação em arquitetura é uma base importante, e se pensarmos no trabalho de arquiteto, vemos que nunca é feito sozinho, precisa de uma equipa especializada, e ele tem esse lado interdisciplinar e aberto a outras áreas”, diz ainda Marta Moreira de Almeida.
Um “senhor arquiteto” que andava sempre de fato e gravata, como lembra MHP, mas que dizia levitar. “Fez mesmo mapas de levitação, anotando que em tal dia tinha levitado 30 centímetros, noutro 20, tal como registava os seus sonhos”.
A 25 de agosto de 1943, Fernando Lanhas iniciou o registo regular dos seus sonhos. Um hábito que vinha de criança e manteve ao longo da vida. “Curiosamente, nos sonhos tinha a mesma personalidade, teve alguns esquisitos, mas sobretudo registava aqueles que iam ao encontro das suas preocupações e do que valorizava”, salienta Pedro Lanhas. “São sonhos sobre a morte, sobre Deus, sobre a arte, sobre os seres humanos”.
Um homem e um artista com “uma dimensão absolutamente singular”, como sublinha Miguel von Hafe Pérez, que de resto está a organizar um livro, promovido pela Fundação Ilídio Pinho, com testemunhos de pessoas das artes visuais e outras áreas, sobre diferentes aspetos da obra de Fernando Lanhas, a sair no início deste ano. J